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Um País de Não-Leitores



Em 2002, um quarto da população brasileira com mais de 10 anos de idade tinha menos de quatro anos de estudos completos: 32 milhões de analfabetos funcionais. Estatisticamente, o brasileiro não estuda, e quem não estuda não lê.
Lucas Murtinho
(02/02/2008)
     Em 1952, a editora americana Doubleday criou o selo Anchor Books, dedicado a lançar obras de ficção literária em formato de bolso. Na autobiografia Book business: publishing past present and future [1], Jason Epstein, editor da Doubleday e responsável pelo lançamento do selo, explica o raciocínio por trás da iniciativa: depois da Segunda Guerra, a porcentagem de americanos com estudo superior aumentou sensivelmente graças à G. I. Bill, uma lei de financiamento dos estudos de veteranos de guerra; muitos desses novos estudantes não teriam dinheiro para comprar os livros que precisariam ler para a faculdade ou que gostariam de ler após os estudos; era preciso, portanto, disponibilizar esses livros num formato mais barato. Nascia o quality paperback.
     Hoje os paperbacks são onipresentes nas prateleiras de livrarias americanas e inglesas, e algumas editoras começam a lançar os livros em paperback (capa mole) e hardcover (capa dura) ao mesmo tempo, abdicando do tradicional período de espera entre o lançamento da versão "cara" e o da versão "barata". Recentemente, a Picador, editora inglesa do grupo Macmillan, anunciou que a partir de 2008 a maioria dos seus lançamentos será feita diretamente em capa mole, com uma tiragem limitada em capa dura.
     O sucesso dos livros em formato mais barato e o momento da sua disseminação nos Estados Unidos ensinam uma lição econômica simples: livros se tornam mais baratos quando há mais leitores. Não acredito que exista um exemplo provando o inverso, que mais leitores surjam quando os livros são mais baratos. E não é difícil entender por quê. Para uma pessoa que não gosta de funk, que diferença faz se o ingresso para um baile funk custa um, dez ou cem reais? O raciocínio é o mesmo para a literatura.

 
Revolução educacional
     Verdade que o desinteresse absoluto é um caso extremo. Eu, por exemplo, não me interesso por ópera, mas se o ingresso for suficientemente barato posso muito bem experimentar uma ópera um dia desses. Nesse sentido, é um bom sinal que as editoras brasileiras lancem cada vez mais coleções de livros de bolso: o leitor eventual pode ser seduzido com mais facilidade por um livro de dez ou vinte reais do que por um de cinqüenta. Mas o efeito dessa diminuição de preços é necessariamente limitado: assim como eu dificilmente vou me tornar um fã incondicional de ópera depois de assistir a uma montagem de A flauta mágica, a disponibilidade de livros mais baratos não vai transformar os não-leitores em traças.
     E o Brasil é um país de não-leitores. Claro: somos um país de não-estudantes. Em 2002, um quarto da população brasileira com mais de 10 anos de idade tinha menos de quatro anos de estudos completos: 32 milhões de analfabetos funcionais. No mesmo ano, as pessoas de mais de 10 anos de idade morando no Brasil tinham, em média, 6,2 anos de estudo [2]. Estatisticamente, o brasileiro não estuda, e quem não estuda não lê. Não me leve a mal: sou totalmente a favor de livros mais baratos nas nossas prateleiras e de iniciativas como bibliotecas nos metrôs ou máquinas para vender livros. Todo esforço ajuda, e cada um faz o que pode. Mas não vai ser assim que vamos nos tornar um país de leitores. O que realmente precisamos fazer é a revolução educacional que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa cinqüenta anos atrás, e em muitos países asiáticos pouco depois disso. É aumentando o público potencial da literatura que o público real vai aumentar.
     Educação é importante por tantos motivos que destacar seu papel para aumentar o público leitor pode parecer um pouco raso. É pela educação que podemos conseguir reduzir a violência, dar força ao crescimento econômico e tornar o Brasil uma democracia mais decente. Se as pessoas vão ler ou não é um ponto relativamente supérfluo.
Mas se quem quer que a educação seja uma prioridade no Brasil não precisa usar o argumento da leitura, quem quer que a literatura brasileira progrida não pode deixar de falar de educação. Ter mais leitores é só o começo. Mais leitores quer dizer mais diversidade de gosto e mais gente disposta a comprar livros, o que leva as editoras a publicar livros mais diversos e investir mais nos livros publicados, porque a recompensa – o lucro da literatura – seria maior. Se as editoras têm mais lucro, elas podem pagar melhor seus autores, o que quer dizer que mais autores podem viver do que escrevem e consagrar mais tempo à produção literária. E mais tempo leva a mais qualidade. Se queremos um mercado literário grande e vibrante, se queremos grandes autores produzindo grandes obras, se queremos que a literatura tenha um espaço importante no cotidiano do nosso país, precisamos de educação. Todas as outras iniciativas, por louváveis que sejam, são paliativas.

[1] W. W. Norton, 2001.
[2] Fonte: IBGE
Le Monde diplomatique
http://diplo.uol.com.br/2008-02,a2204

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