Pular para o conteúdo principal

Com que sonha Rosikássia?

Com que sonha Rosikássia?
Joca Souza Leão


Alguém já lhe rogou praga? Pois me rogaram. Não sei quem. Mas que rogaram, rogaram. E praga braba: um comitê de candidato a vereador perto da minha casa. Sabe o que são dois meses com a mesma música de propaganda eleitoral a todo volume no pé-do-ouvido, a lhe atazanar o juízo? Decorei o número do cara, claro. É de rombo, como se diz em bingo. Quando sair a relação dos eleitos, antes de ver com quantos votos se elegeu a minha candidata, vou conferir em qual suplência ficou o sacripanta. Praga por praga também sei rogar. Nunca pegou. Mas dessa vez vai pegar. Pode crer.
Na quinta passada, último dia em que a lei(?) permitiu a zorra (alto-falantes berrando, carros estacionados em locais proibidos e atrapalhando o trânsito), fui conhecer o território do inimigo. Puxei conversa com os irmãos Rosikássia e Karlisson, escritos assim, com k, eles soletraram pra mim. Até amanhã, dia da eleição, os dois estão, por assim dizer, empregados no comitê. Se o candidato emplacar, Karlisson espera que ele cumpra a promessa e arranje emprego pros dois.
Karlisson tem 22 anos e Rosikássia, 19. São de Carpina. Karlisson é um camarada entroncado, falante, olhos vivos e verdes, cabelo crespo e arruivado, que antigamente se chamava sarará. Rosikássia é uma moça bonita, mas nem parece se dar conta. Morena, boa altura, cheinha, cabelo preto longo e muito liso, olhos castanhos ligeiramente puxados, parece uma indiazinha. Sem maquiagem e muito tímida. O que eu lhe perguntava, o irmão respondia. Ela apenas esboçava um ar de riso, logo escondido pela mão em concha sobre os lábios. Há dois meses os dois moram no tal comitê, no que antes fora o quarto de empregada, nos fundos da casa.
Karlisson é um faz-tudo: vigia, faxineiro, contínuo, quebra-galho de eletricista e encanador, pintor de faixa, o escambau. "E quando a esposa do doutor me vê aqui encostado, me dá logo uma bandeira e me manda pra rua." Rosikássia é, oficialmente, "bandeirista". Passa o dia inteiro na Agamenon Magalhães, agitando o mastro de uma bandeira enorme. "Ela só conhece o Recife daqui pra Boa Viagem, porque foi numa carreata em cima de um trio elétrico. Chegou aqui de volta mouquinha com a zoada do trio", contou Karlisson.
O dia dos irmãos começa cedo, 5h30 tão de pé. Enquanto Rosikássia lava a roupa dos dois e faz o café, Karlisson varre o quintal da casa e a calçada da frente. Café tomado, Rosikássia ajuda o irmão na faxina. "Aí, ela vai pra Agamenon garantir o ponto, se não os bandeiristas dos outros candidatos pegam."
Rosikássia ganha "dez mil réis por dia, mais uma quentinha no almoço e um lanche (sanduíche e refrigerante) no finzinho da tarde. Come lá mesmo, no ponto dela". Quando Karlisson consegue uma folga, leva água e biscoito pra irmã. "E as necessidades?", perguntei. "Ah, ela fez amizade com as meninas do Bompreço e usa o sanitário de lá."
Karlisson ganha "um salário". Sem carteira, que aliás ele nem tem. Em Carpina também vive de bico. Como trabalham todos os dias, não têm com o que gastar. Nesses dois meses, tiveram dois dias de folga. Karlisson comprou uma calça jeans, uma "camiseta de boy" e um tênis. Rosikássia comprou saia, blusa, sandália, uma pulseirinha e um par de brincos. "Meu sonho era juntar dinheiro pra dar de entrada numa moto e fazer de táxi lá em Carpina", disse Karlisson sorridente, para logo em seguida desfazer o sorriso: "Mas não vai dar, não. A entrada é bem 500 contos e tem que ter emprego fixo pra garantir a prestação."
Quis saber se a música do candidato, repetida ad aeternum e naquele volume, os incomodava. "Nem ouço mais, doutor. Não sei nem direito o que é que diz. Só sei o nome do homem porque é meu patrão. Sou eu mesmo quem ligo o som. Dia desses, esqueci de desligar e dez da noite os vizinhos vieram reclamar."
Depois dessa conversa, fiquei com remorso da minha praga. Não sei o que faça. Nem ao menos sei como se desfaz uma praga. Se ela pegar, adeus empregos. A moto de Karlisson vai ficar no sonho. E Rosikássia... Sonha com quê?

Publicado no Jornal do Commércio - Recife 004/10/08
Joca Souza Leão é publicitário e cronista jocasouzaleao@gmail.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.