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Realidade Virtual - Fred Matos


     Olegário emudecia e se sentia marginalizado quando no escritório os colegas comentavam os bate-papos virtuais na Internet. Era como se conversassem em uma língua estrangeira sobre um universo que ele não conhecia. Nestes momentos preferia se afastar a deixar que soubessem que ainda ignorava a high-tech. Foi por isso que comprou um microcomputador e ingressou na nova confraria. Não podia prever que aquilo iria mudar sua vida.

     Instalado o aparelho, contratado um provedor de acesso ao ciberespaço, inscreveu-se nas dezenas de listas de discussões indicadas pelos colegas e não demorou a ter participação ativa e cotidiana em encontros on-line para conversar sobre literatura, política,filosofia,e uma infinidade de outros assuntos pelos quais tinha interesse.Quando chegava em casa engolia o jantar com urgência de condenado e corria para o micro. Nos fins de semana recusava-se a sair, apesar dos queixumes dos filhos e de Lívia, sua esposa.

     Um dia se assustou quando percebeu que já clareava, que não sentira o tempo passar e que, insone, teria que ir trabalhar. Sem perceber viciou-se, logo ele, que se orgulhava de nunca se ter rendido ao álcool ou ao fumo. Cogitou controlar-se, estabelecer horário. Nessa noite excedeu apenas dez minutos a hora marcada e, para surpresa da mulher, há muito não visitada, esmerou-se nas carícias preliminares, mas, debilitada pela noite perdida, virou-se para o lado e ferrou em sono profundo imediatamente após o gozo, frustrando-a dos carinhos posteriores a que estava habituada.

     No dia seguinte excedeu o tempo estipulado em meia-hora, mas, após breve cochilo, levantou-se e tornou a ligar o micro. Concluiu que aquela vida era, agora, para ele, mais importante que a vida real, e se entregou de corpo e alma à virtualidade. Em seu benefício diga-se que fez esforços para que Lívia ingressasse também no novo mundo: ofereceu-lhe comprar outro computador e instalar uma nova linha telefônica, assim, ele pensou, poderiam conversar como há muito não faziam. Ela achou um despropósito.

     Varando as madrugadas, ele que se orgulhava da pontualidade, começou a se atrasar para o trabalho e a acumular faltas. Foi despedido. Calculou que o valor recebido na rescisão contratual, somado ao do saque do fundo de garantia e ao montante que tinha em depósitos de poupança, seria suficiente para manter-se por dois anos sem alterar o padrão de consumo da família e não cuidou de procurar um novo emprego. À mulher justificou-se dizendo que depois de 20 anos de trabalho merecia pelo menos seis meses de férias, após o que, com a sua experiência e o bom conceito que gozava no mercado, não teria nenhuma dificuldade para encontrar uma firma que o contratasse. Ela não tinha com o que se preocupar,garantiu-lhe.

     Os seis meses passaram voando e ele dilatou o prazo para um ano. Refez as contas e verificou que, apesar do substancial aumento do custo de telefone, como estava economizando bastante em combustível, vestuário e lazer, as reservas financeiras seriam suficientes para um período maior que o anteriormente calculado.

     No início Lívia acreditava que aquilo era uma fase que mais dia menos dia seria superada: “logo seu pai estará entediado, tenha paciência meu filho” ela consolou Ricardo, o primogênito, carente da companhia do pai, que antes da internet levava-o a todos os jogos do Vitória. Depois, vendo que o marido alheava-se de tudo, sequer dando atenção às ameaças que fazia de abandoná-lo, ela procurou um psicólogo conseguindo que ele viesse à sua casa, já que Olegário só levantava da cadeira para satisfazer as necessidades fisiológicas. Dali não arredava pra mais nada, nem pra comer, nem pra dormir.

     A reação do marido à visita do psicólogo, expulsando-o do seu gabinete com palavras de baixo calão, foi a gota d’água. Olegário não desviou o olhar do monitor, não afastou as mãos do teclado sequer disse qualquer palavra quando, malas nas mãos, Lívia e os filhos vieram avisá-lo que estavam indo embora. O único inconveniente, Olegário pensou, é que agora terei que me levantar até pra beber água.

     Uma semana depois, Leonardo, um colega de virtualidade que morava no mesmo bairro, estranhou que, embora estando on-line no ICQ, Olegário não respondia aos convites para chat. Resolveu fazer uma visita, era uma oportunidade e uma desculpa para conhecer pessoalmente aquele camarada inteligente e espirituoso.Tendo sido informado pelo porteiro que Olegário fora abandonado pela família e que, desde então, ninguém no apartamento atendia o interfone e não abria a porta nem mesmo para se livrar do lixo, Leonardo intuiu uma desgraça e chamou a polícia.

     Olegário foi encontrado desacordado sobre o teclado em estado de inanição profunda. Agora faz fisioterapia para recuperar a atrofia das pernas. Reconciliou-se com Lívia e aceitou passar uma temporada em uma clínica para tratamento de drogados. Já está com uma aparência mais saudável e aguarda ansioso o dia de receber alta, porque tem muitas novidades para contar nos bate-papos virtuais, mas sabe que disto deve manter segredo.

Extraído, com autorização do autor, do livro Melhor Que a Encomenda – Funcultura Bahia 2006.
Leia também: Eu Meu Outro e Anomalias (poesia)

Comentários

  1. Creio haver mínimas falhas de digitação, não dou certeza porque não conferi com o texto no livro. Mas nada que comprometa.
    Sinto-me honrado pelo espaço que me é concedido no seu blog.

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  2. Gostei. Preciso tomar cuidado para não chegar nesse estágio.
    Quem conhece a comunidade do Livro Errante pode entender perfeitamente o que aconteceu com Olegário.
    A sorte é que a comunidade virtual vem acompanhada de leituras e troca-troca de livros para fugir um pouco do computador.

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  3. Reginaaaaaaaaa, olha que honra, vc postou um conto meu no mesmo blog em que postou do Fred Mattos!

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  4. Vou me peneticiar por demorar a passar por aqui ultimamente. Beleza de conto, autor e blog de parabéns. Um conto que mostra liricamente uma ficção que, infelizmente, já acontece. E como tudo que é triste, não deixa de ser cômico "ver" a situação sentada em frente ao monitor à noite depois de 12 horas de trabalho.
    Ps.: Minha cumadi, conto bom é apátrido (ahahhha)!

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