A Menina traz o bilhete do colégio: reunião das mães na quinta-feira. Assunto: tratar da primeira comunhão da turma B-74. As circunstâncias da vida - ou, segundo o poeta Drummond, os balanças da vida - haviam-no reduzido a um estado híbrido: pai e mãe ao mesmo tempo.
Não há de ser nada, pensou ele, já houve tempo pior, quando a garota precisava ir ao banheiro do cinema e ele não podia levá-la ao reservado dos homens, e, em compensação, não podia entrar no sagrado átrio das mulheres. O jeito era levar a guria até a porta e recomendá-la a alguma ocupante potencial e responsável.
Esse tempo passara, felizmente, e a garota agora sabia se virar sozinha nessas e outras encruzilhadas, mas aí estava o inesperado: a primeira comunhão. O consentimento já fora dado, por escrito, mas isso não bastava. Agora chegavam os pormenores do celestial banquete - nome com que alguns renitentes teimam em xingar a primeira comunhão.
Pois vestiu-se, atravessou a rua segurando a pasta da garota ( por sorte, o colégio é quase em frente de sua casa) colocou-a na fila e foi juntar-se às outras mães, que faziam um barulho de pinto - uma ninhada e pintos dentro de uma chocadeira. Olharam-no de alto a baixo, inquisidoramente. Ele não teve outro remédio senão amarrar mais a cara, que de natural já é suficientemente amarrada. Uma sineta tocou lá dentro e apareceu a responsável. Foi empurrando as mães para uma sala.
- O senhor também é mãe?
- Sou ... quer dizer, sou pai, mas...
- Então é do outro lado.
Mas não havia o outro lado. Estavam todos do mesmo lado, a união fazia a força e dava unanimidade às opiniões:
- Queremos vestidos até em baixo.
A organizadora tinha um vestido bossa-nova em matéria de celestial banquete: as meninas não deveriam se vestir como noivas adultas, e sim como meninas. Vestidinhos brancos, até os joelhos, um laço simples na cintura, grinalda discreta e, nas mãos apenas um rosário. Só isso, nem lírios nem copos-de-leite. Mas a turma das mães estava agitada, queria mesmo o clássico vestidão roçando até o chão, as flores, as grinaldas de filó, os véus; Pediram-lhe a opinião:
- Eu não entendo muito dessas coisas mas decidam à vontade. Eu pago o prejuízo,
foi um escândalo. Prejuízo dar a filha ao celestial banquete? Era um sacrilégio, um pai desnaturado, isso sim.
- Não, o que eu queria dizer é que pagava o vestido tal como as senhoras aqui presentes decidissem. prejuízo é força de expressão, gíria, significa despesa, só isso, não é maldade.
- O senhor já fez a primeira comunhão?
Poderia responder que já fizera não só a primeira como a última comunhão. Mas elas não o entenderiam, da mesma forma como ele não entendia o problema delas:
- A cintura deve ser pregueada nas costas e leva três quartos.
- Na revista eu achei um modelo muito engraçadinho, trouxe aqui o recorte...
- Minha filha vai de véu, foi o mesmo que eu usei quando casei, todas as minhas filhas vão usar o mesmo véu.
- Pois eu vou guardar o véu da minha filha para quando ela casar.
Até que a organizadora bateu com o lápis na mesa:
- Silêncio!
O silêncio foi feito.
- Solicitamos às senhoras mães...
Ela olhou em sua direção e fez uma pausa, tentou abrir a única e honrosa exceção, afinal havia um homem na sala, mas a vacilação passou e ela o considerou muito insignificante para merecer referência especial:
- ... que preparem as suas filhas até o dia 13. O modelo escolhido será obrigatório. Quem não estiver pelo figurino aqui adotado que vá fazer a primeira comunhão em outro canto...
- Deus é um só.
Ele se surpreendeu dizendo esta frase em voz alta.
Olham-no com raiva;
- O senhor é protestante?
- Ele tem cara é de comunista.
- Tenho pena é da filha dele!
Sente vontade de mandar aquelas mães todas às favas. Mas prefere calar a boca e mexer os pés. Sai de cabeça baixa. sozinho. E um pouco mais triste do que o habitual. Não há de ser nada, não há de ser nada. Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração. Ser pai é pagar a despesa.
( Do livro: Quinze anos - a Juventude como ela é Ed. de Ouro 1973)
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