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Reunião de Mães, Carlos Heitor Cony


     
A  Menina traz o  bilhete do  colégio: reunião das mães na quinta-feira. Assunto: tratar da primeira comunhão da turma B-74. As circunstâncias da vida - ou, segundo o poeta Drummond, os balanças da vida - haviam-no reduzido a um  estado  híbrido: pai e mãe ao mesmo  tempo.
     Não há de ser nada, pensou  ele, já houve tempo pior, quando  a garota precisava ir ao  banheiro do  cinema e ele não podia levá-la ao  reservado dos homens, e, em  compensação, não podia entrar no  sagrado átrio das mulheres. O  jeito  era levar a guria até a porta e recomendá-la a alguma ocupante potencial  e responsável.
     Esse tempo passara, felizmente, e a garota agora sabia se virar sozinha nessas e outras encruzilhadas, mas aí estava o  inesperado: a primeira comunhão. O consentimento já fora dado, por escrito, mas isso não  bastava. Agora chegavam os pormenores do celestial banquete - nome com  que alguns renitentes teimam  em  xingar a primeira comunhão.
     Pois vestiu-se, atravessou a rua segurando a pasta da garota ( por sorte, o  colégio é quase em  frente de sua casa) colocou-a na fila e foi juntar-se às outras mães, que faziam um  barulho  de pinto - uma ninhada e pintos dentro de uma chocadeira. Olharam-no de alto  a baixo, inquisidoramente. Ele não teve outro  remédio senão amarrar mais  a  cara, que de natural já é suficientemente amarrada. Uma sineta tocou lá dentro e apareceu a responsável. Foi  empurrando as mães para uma sala.
    - O senhor também  é mãe?
    - Sou ... quer dizer, sou pai, mas...
    - Então é do outro lado.
   Mas não  havia o outro lado. Estavam  todos do mesmo lado, a união  fazia a força e dava unanimidade às opiniões:
    - Queremos vestidos até em  baixo.
   A organizadora tinha um  vestido  bossa-nova em matéria de celestial banquete: as meninas não  deveriam se vestir como noivas adultas, e sim como meninas. Vestidinhos brancos, até os joelhos, um laço  simples na cintura, grinalda discreta e, nas mãos apenas um  rosário. Só isso, nem  lírios nem  copos-de-leite. Mas a turma das mães estava agitada, queria mesmo o  clássico vestidão roçando até o  chão, as flores, as grinaldas de filó, os véus; Pediram-lhe a opinião:
    - Eu não  entendo muito  dessas coisas mas decidam à vontade. Eu pago o prejuízo,
foi um  escândalo. Prejuízo dar a filha ao celestial banquete? Era um sacrilégio, um pai desnaturado, isso  sim.
    - Não, o  que eu  queria dizer é que pagava o vestido tal  como as senhoras  aqui presentes decidissem. prejuízo é força de expressão, gíria, significa despesa, só isso, não é maldade.
    - O senhor já fez a primeira comunhão?
   Poderia responder que já fizera não  só a primeira como a última comunhão. Mas elas não o entenderiam, da mesma forma como ele não entendia o problema delas:
    - A cintura deve ser pregueada nas costas e leva três quartos.
    - Na revista eu achei um modelo muito  engraçadinho, trouxe aqui o  recorte...
    - Minha filha vai de véu, foi o mesmo que eu  usei quando  casei, todas as minhas filhas vão usar o mesmo  véu.
    - Pois eu vou guardar o  véu da minha filha para quando  ela casar. 
    Até que a organizadora bateu com o  lápis na mesa:
    - Silêncio!
O silêncio  foi  feito.
    - Solicitamos às senhoras mães...
    Ela olhou em sua direção e fez uma pausa, tentou abrir a única e honrosa exceção, afinal  havia um homem na sala, mas a vacilação passou e ela o  considerou muito insignificante para merecer referência especial:
    - ... que preparem as suas filhas até o  dia 13. O  modelo escolhido será obrigatório. Quem não  estiver  pelo figurino aqui  adotado que  vá fazer a primeira comunhão  em  outro  canto...
    - Deus é um  só.
    Ele se surpreendeu dizendo esta frase em  voz alta.
Olham-no com raiva;
    - O senhor é protestante?
    - Ele tem  cara é de comunista.
    - Tenho pena é da filha dele!
    Sente vontade de mandar aquelas mães todas às favas. Mas prefere calar a boca e mexer os pés. Sai de cabeça baixa. sozinho. E um pouco mais triste do  que o  habitual. Não há de ser nada, não há de ser nada. Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o  coração. Ser pai é pagar a despesa.

( Do livro: Quinze anos - a Juventude como  ela é Ed. de Ouro 1973)
   

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