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Inferno, Raquel de Queiroz


    NÃO me lembro que nenhuma cidade do Mundo seja assim. Cada cidade tem os seus ruídos, mas são ruídos toleráveis, a que a gente pode acostumar-se, dentro dos quais é possível a vida. Mas no Rio é diferente. No Rio parece que há uma deliberada campanha contra a sanidade das criaturas, um desafio de loucos para ver quem é que faz mais barulho.
    Pràticamente, ao lado de cada casa há um prédio em construção; e por trás dos tapumes, metòdicamente, se organiza um inferno completo de ruídos intoleráveis - a começar pelo diabólico estrondar do mexedor de concreto, espécie de liquidificador gigante, onde em vez de pedaços de frutas se agitam pedras. E o ruído ao mesmo tempo cavo e estridente do batedor de estacas - mas, quando se diz cavo ou estridente, pense-se numa estridência multiplicada por mil - porque todo adjetivo é fraco para qualificar tal clamor: primeiro é a pancada surda - búuummm! num ronco fundo de terremoto, martelada cega nas entranhas da terra - e depois a repercussão vibrante do choque através da estrutura metálica do mecanismo, como um sino imenso mas rachado - dlôoommm! E tôda a vizinhança treme quando o pêso bruto tomba - Búumm! e depois há aquela pausa sinistra - e vem o Dllôoomm! que fica retinindo no ar, feito uma maldição trepidante. E há a mais todos os ruídos subsidiários da construção - as cavadeiras, as marteladas no ferro, as serras cortando metal, as misturadeiras de massa, as corredeiras de cascalho, com as pedrinhas em cachoeira se atropelando torrencialmente, interminàvelmente.
    E há, completando a orquestra, os incessantes ruídos da rua - o resfolegar dos carros que engatam primeira para a subida, os caminhões de escapamento aberto, as buzinas estrídulas, o apavorante ganido dos freios. E à noite, quando os operários descansam no que deveria ser o silêncio, a bendita calma da noite - começa o páreo diabólico das lambretas, e os carros que continuam acima e abaixo, ainda mais desinibidos do que durante o dia; sem falar nos aviões que cortam os céus sem parar, quer de dia quer de noite, talvez de minuto a minuto, em vôo baixo, rasante, sempre a levantar ou a aterrissar no Santos Dumont, aqui vizinho.
    E pensar que nós escolhemos casa nesta rua porque, sem trilhos de bondes, na subida de Santa Teresa, com seus oitis frondosos, parecia uma promessa de silêncio e pouco tráfego!
    O rádio do vizinho que toca aos urros, berrando um sambolero, ou gargalhando sinistro numa novela - some-se no turbilhão de ruídos, é apenas um acompanhamento musical ao fragor de ruídos mecânicos que não nos desperta pela manhã, ao agravar-se, porque já não nos deixou dormir a noite tôda. E não nos deixa trabalhar de dia, antes com seus martelos e seus mexedores de pedra, nos levanta a tampa da cabeça e se instala bem no meio dos nossos miolos nauseados.
    Escrevi na primeira linha o nome de inferno, e vou falando em diabos e demônios a cada linha seguinte - em verdade é porque se me perguntassem qual é minha concepção de inferno, eu diria que não é o fogo nem é o enxôfre, nem é o gêlo - mas o barulho. Inferno para mim é ruído - ruído irmão dêste estrondo mecânico que nos desgraça a vida aqui na cidade. Ai, se de vez em quando não me fôsse dado um período de repouso no silêncio abençoado do sertão, acho que eu já teria morrido, ou corrido doida, entoxicada de barulho. Dizem que no avião a jacto o principal alívio que se sente é a ausência de trepidação de motor - e realmente há de ser uma delícia - porque de tôdas as torturas da nossa civilização feita de rodas que se atritam e motores de explosão - a trepidação é a tortura maior de tôdas.
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    Amanhecer naquela tranqüilidade - sabendo que em léguas ao redor não lateja um engenho mecânico - nem um! - e onde um cantar longínquo de galo até parece um clarim. Ouvir pela noite um tinir de grilo - sim, meu Deus, escapar do pesadelo onde neste instante me afogo, sem um refúgio possível - a vitrola em frente a gritar alucinadamente “me dá um dinheiro aí”, o mexedor de concreto a chacoalhar como as tripas de ferro do demônio, um caminhão a óleo, de escapamento sôlto, a escalar a ladeira, uma buzina de jipe a ganir histèricamente, chamando um retardatário, o rangir rascante do freio de um carro que quase mata um cachorrinho na curva da Hermenegildo de Barros, tudo coberto pelo Superconstellation que nos sobrevoa, a preparar-se para o pouso - e pensar que existe no Mundo um lugar onde é possível escutar um grilo. Grilos! Já nem falo em passarinhos - na família de canários que fêz ninho no pé de jucá ao lado do alpendre; nem nos galos-de-campina que mariscam no terreiro -, bastava-me um grilo. E pensando em grilo faço sonhos impossíveis - chuva a pingar do beiral, um longínquo trovão a resmungar na serra azul...
    Impossível? Falei em impossível? Impossível era até ontem, quando só se falava em sêca. Mas aqui está o telegrama, Deus abençoe quem o assina - choveu no Ceará todo, no mês que vem já me vou!




Fonte: revista O Cruzeiro 26/03/1960. O blog manteve a grafia original)

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