O maior sonho da viúva Ana era ver o filho formado em medicina. De modo que quando Jorge terminou o segundo grau e lhe anunciou que pretendia cursar a faculdade no Rio, ela não hesitou:vai, meu filho, vai. As despesas seriam pesadas e sentiria falta do rapaz, que estaria muito distante da pequena cidade em que viviam, no interior de Goiás; mas a carreira dele era mais importante.
Agüentaria a separação desde que Jorge – única condição – lhe escrevesse todas as semanas.
Jorge foi, portanto. E nunca mais voltou. Esta história, é bom avisar logo, tem sonho, mas não tem final feliz.
Jorge fez vestibular. Várias vezes. Nunca foi aprovado. Era inteligente, mas alguma coisa acontecia com ele na hora do exame, dava-lhe um branco,errava questões elementares. Mesmo reprovado,contudo, não voltaria. Não fazia parte de seus planos trabalhar na lojinha da mãe, e além disto queria poupar a velha de um desgosto que, sem dúvida, a mataria: já tivera mais de um ataque cardíaco.
De modo que mandou uma carta dizendo que já estava matriculado – o primeiro passo para realizar o sonho da mãe e o seu próprio.
Nos anos que se seguiram mandou muitas cartas, detalhando minuciosamente suas atividades no curso: “Hoje começamos a estudar anatomia”.
Nos anos que se seguiram mandou muitas cartas, detalhando minuciosamente suas atividades no curso: “Hoje começamos a estudar anatomia”.
Seguia-se uma descrição dos órgãos encontrados na cavidade torácica; Jorge tinha comprado um livro sobre o assunto, que estudava exaustivamente.
Nenhum estudante de medicina conhece anatomia tanto quanto eu, dizia à Sônia, a namorada.
Sônia era lindíssima; outra razão pela qual Jorge não deixara o Rio.
“Hoje olhei pela primeira vez ao microscópio.
Que emoção, mamãe.” A visão da célula, a unidade por excelência da vida, que coisa comovente.
E reveladora: como podia alguém entender o mistério da existência sem ter visto uma célula ao microscópio? E sem observar as reações de um ser vivo a estímulos inesperados? “Hoje injetamos
adrenalina num camundongo. Que coisa, mamãe.
Você precisava ver. O bicho parecia maluco.”
Tudo aquilo estava muito bem, mas a mãe queria ver o filho num hospital, atendendo pacientes.
De modo que – três anos já se haviam passado– ele escreveu: “Hoje examinei o meu primeiro doente”.
A notícia deixou a mãe extasiada. Tanto que a próxima carta era uma pergunta atrás da outra.
Que idade tem o paciente? (Vinte e dois, respondeu Jorge. A idade dele próprio.) De onde vem?
(Do interior.) De que sofre?
Claro, Jorge poderia fornecer um diagnóstico qualquer, era só consultar o livro de clínica médica: é cirrose, é cardiopatia. Mas preferiu dizer a verdade: por enquanto não se sabia qual era a doença, que se manifestava por um vago malestar.
Consulta o médico, dizia Sônia, inquieta. Não se tratava só de mal-estar: Jorge estava emagrecendo
a olhos vistos.“Ele está emagrecendo, mamãe. O pobre rapaz perdeu dois quilos na última semana.” Espero
que não seja coisa ruim, disse a viúva, consternada:não queria que o filho assumisse o sofrimento
de seu paciente. Jorge mostrava-se reticente: os exames não eram conclusivos, os médicos continuavam
a investigação. Seu estado se agravou e Sônia decidiu não perder mais tempo: internou-o num hospital. Deixe-me avisar sua mãe, implorou.Mas Jorge mostrou-se irredutível. Se a mãe viesse, descobriria tudo, seria o fim do sonho que a mantinha viva. Continuou, pois, escrevendo cartas:
“Ele não está melhorando”. E acrescentava,com certo otimismo: “Mas os médicos aqui do hospital,
os meus professores, já têm uma pista”.
Mais que uma pista: tinham o diagnóstico. O câncer estava disseminado, metástases por toda a parte. A agonia foi rápida. Quase inconsciente, ele chamava ainda pela mãe.Sônia acompanhou o corpo. A viúva Ana
chorou muito ao conhecer aquela que seria sua futura nora. E perguntou sobre o curso que Jorge tinha feito. Brilhante, garantiu Sônia, entre soluços,o curso que ele fez foi simplesmente brilhante.
O que, para a viúva Ana, não era novidade.Ela tinha certeza de que Jorge daria um grande médico. Sonho de mãe não mente.
Nota: Texto escrito antes da reforma ortográfica. O blog manteve a grafia original.
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