Pular para o conteúdo principal

Raras,Marcos Rodrigues


    Como eu morava no primeiro andar, foi lá debaixo mesmo que tudo veio. Ela bateu o portão berrando que eu era um louco, esquisotímico. Não agüentava mais meu transtorno obsessivo-compulsivo. Esquisotímico? O que é isso? E meus vizinhos, e o porteiro, como é que fica tudo isso?

     A história é que eu gosto de futebol. Na verdade, só de algumas coisas do futebol. Não agüento esse futebol que anda por aí. Com esse negócio de passar de lado, se atirar no chão, beijar camisa, abraçar técnico, comentar juiz. Eu não agüento. Por isso me dedico ao culto dos grandes momentos do futebol. O que eu gosto mesmo são as coisas raras do futebol. Que são raras, claro. Gosto mais ainda das coisas singulares. Essas, curiosamente, estão ficando cada vez mais raras.
    Foi esse meu interesse, minha devoção, que gerou toda a gritaria no portão. Eu havia começado apresentando minha visão do assunto e, numa deferência especial, apresentei a ela a minha maior preciosidade. Falei da defesa do escorpião realizada pelo grande goleiro René Higuita, colombiano, no estádio de Wembley, contra a Inglaterra, na primavera de 1995.
    Ia o jogo já pela metade quando uma bola vai a gol. Digo que a bola foi a gol porque foi mal chutada por um inglês inexpressivo no meio do arco. Dois palmos acima da cabeça do goleiro. Uma bola fácil. Mas Higuita não é um homem para coisas fáceis. Não resistiu. Arriscou a carreira. Arriscou a vida. Arriscou tudo: em cima da linha de gol, ele me dá um salto para frente, com os braços abertos, como se fosse dar um anjo de trampolim, e defende a bola com a sola das chuteiras, que girou em suas costas rumo ao quadril. Desceu ao gramado já imortal. Essa eu vi, lá mesmo. O estádio paralisou. O jogo parou naturalmente, o juiz entorpecido não sabia o que fazer. Gradualmente começou um aplauso longo, perplexo e respeitoso. O Higuita sabia o que havia ocorrido. Eu também, presto atenção nessas coisas: foi um evento futebolístico singular individual com minha participação presencial passiva. Higuita não precisou de ninguém. Aí está a superioridade dele sobre as coisas do Pelé que, coitado, sempre precisou de um coadjuvante ativo. Como disse, a bola veio ao Higuita. Ele, iluminado, naquele átimo, cedeu à compulsão. Naquele instante fez, pela primeira vez no futebol, o belo individual. Isso tudo num Wembley ensolarado, coisa bastante rara, mas não singular.
    Como ela não entendia de futebol e não havia nem ouvido falar da memorável defesa, me ofereci para ilustrar. Eu já havia visto dezenas, talvez centenas, de vezes.
    Fiquei na cabeceira e pedi que ela, do pé da cama, jogasse o travesseiro numa parábola que passasse dois palmos acima de minha cabeça. Ela até que fez tudo direitinho, mas falhei na primeira, claro. Não passei nem perto. Para que ela não pensasse que eu era louco, expliquei que nem me passava pela cabeça fazer algo próximo do Higuita, eu queria apenas ilustrar. Eu representaria para que ela entendesse. Só isso. Ela insistiu que já havia entendido, mas eu pedi que jogasse outra vez, ela aquiesceu. Errei de novo. E olha que eu estava em minha casa, na minha cama, na minha cabeceira, com meu travesseiro.
 Pedi mais uma vez e mais outra e assim fomos tentando. Depois de vinte e oito, ela disse vamos parar, definitivamente, vamos parar. Eu disse não posso. Ela argumentou e eu disse por favor, não posso parar. Eu disse ainda educadamente pelo amor de Deus, até eu acertar. Ela foi se irritando e, em meio a umas discussões desgastantes, fomos tentando. Eu não estou em forma e fui me cansando. Decerto não havia nem mais graça nos meus saltos. Mas eu precisava me livrar daquele encargo. E fui me cansando e tudo foi ficando mais difícil, sobretudo com ela. Nós estávamos na quadragésima oitava e eu precisava acertar em cinqüenta. Precisava porque precisava. Mas ela inexplicavelmente parou e jogou o travesseiro pela janela. Disse game over. Assim mesmo, uma frescura.
    Implorei, pedi outro, pelo amor de Deus, mais unzinho, mas não teve jeito mesmo. E o amor? Onde foi parar este comportamento moral axiológico mais elevado? E o partilhar da impressão estética singular? Ela não quis saber de mais nada. Nem de mim. Se vestiu, pegou a bolsa e se mandou. Uma fera.
    Eu, incompreendido, vesti meu pijama e fui pra janela. Lá de cima escutei tudo e, ofendido, fui dormir. Pensando na mulher do Higuita. Decerto uma mulher sensata, amorosa e compreensiva. São muito raras hoje em dia.

Comentários

  1. OLÁ REGINA.

    SOU O SEU MAIS NOVO SEGUIDOR.

    ESTA CHAVE QUE DEIXO AQUI ENTRE OS SEUS SEGUIDORES, CERTAMENTE, ABRIRÁ TODAS AS PORTAS PARA VOCÊ EM 2011.

    TORÇO, SINCERAMENTE POR ISTO.

    REGINA, ESTE É UM CONTO DE UMA VERDADEIRA AUTORA E PROFISSIONAL.

    VOCÊ, NEM SEI SE O CASO, POIS É A PRIMEIRA VEZ QUE A VISITO, PODERÁ -SE JÁ NÃO FOR O CASO - ESCREVER UM LIVRO, TRANQUILAMENTE.

    MEUS PARABÉNS!!!

    ESTOU CONVIDANDO VOCÊ PARA QUE VISITE MEU BLOG DE HUMOR: "HUMOR EM TEXTO".

    A CRÔNICA DESTA SEMANA É : "AH, MULHERES DE SAIA!"

    ESPERO QUE VOCÊ PARTICIPE E DÊ SUA OPINIÃO.

    UM ABRAÇÃO CARIOCA !!!

    ResponderExcluir
  2. Bom dia Paulo,
    Agradeço a visita simpática. Esclareço que o conto "Raras" é de Marcos Rodrigues, engenheiro e prof. da Poli da USP; se eu tivesse o talento dela, já teria escrito livro sim. O professor bem que poderia fazê-lo.
    vou visitar seu blog.
    Muito obrigada pela chave.
    abraço
    Regina

    ResponderExcluir
  3. Gostei muito. Ótimo ritmo e ótima prosa. Ladyce

    ResponderExcluir

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.