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Quarta-feira é dia de conto: O Meu Avô, Dalton Trevisan

Dalton Trevisan saindo da Livraria Chain,Curitiba
 O Meu Avô
Dalton Trevisan

     Vovó finou-se ao lado do fogão, cerzindo meias no ovo de madeira. O velho dava-lhe as costas, um de mal com o outro. O ovo rolou a seus pés... voltou-se para ela, quietinha na cadeira de palha. Cerzira a meia e, ao levar o fio à boca (tinha todos os dentes aos setenta anos), morreu.
     O velho trancou-se no quarto. Batia na parede com um martelo, a cada pancada seguiu-se um grito, Os filhos arrombaram a porta, tomaram-lhe o martelo, não é que enterrava um prego na cabeça?
     Vovô comia com a colher. Meu pai cortava-lhe a carrne no prato e, ao deitar-se, escondia garfo e faca. O velho levava para o quarto a sua garrafa de vinho, que os filhos enchiam toda noite, misturando-o com água.
     Tinha muito medo de açúcar na urina. Antes de enfiar-se na cama, de cachimbo e ceroula, aparava dois barbantes na medida do pulso e tornozelo, verificava na manhã seguinte se o corpo havia inchado. Dormia bêbado, esquecido da porta aberta...Um dos netos reduzia os barbantes e espalhava açúcar pelo ourinol, que amanhecia coberto de formiguinha ruiva.
     Saudoso da falecida, jurou privar-se de manteiga o resto de seus dias. E manteiga era o que mais gostava, depois de beber. Vovó não se deu por satisfeita; ele a escutava que vinha deitar-se, arrastando o vaso debaixo da cama. A garrafa corria no soalho, gorgolejava um resto de vinho. Os brados do meu avô ecoavam pela casa:
     -Suma-se daqui... Já morreu, diaba!
     Que tanta mosca ao redor da cama? No velório bem se queixou: essa bicha está com cheiro!  e queimava folhas de alecrim no brasido.
     O velho achou a navalha de meu pai e, antes que a defunta se deitasse na cama, cortou o pescoço de uma a outra orelha. Sustentando com as mãos a cabeça, seguiu pelo corredor até a cozinha, deitou-se ao pé da cadeira de palha — o sangue verteu que nem chuva debaixo da porta.
     Pela manhã, quando foi acender o fogo, mamãe o encontrou. Meu pai suspendeu o velho, encostou-o na parede: "Pai, pai, sou eu. Pai, me responda. É o Paulo". Tinha de firmar a cabeça no pescoço a fim de que não rolasse.
     De volta do enterro, meu pai sentou-se na cadeirinha de palha, o queixo na mão. Foi ao quarto de vovô, achou a garrafa pela metade. Bebeu o vinho azedo, esfregou os dedos no sangue, chamou pelo velho. Conversava com ele no quarto, bem como pai e filho. Mamãe batia na porta:
     — Venha jantar, Paulo.
     À noite, ele pregou as portas e janelas. E foi dormir bêbado, a mão suja de sangue.

(Novelas Nada Exemplares. pqgs. 104 a 106)

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