Quando começo a dormir , deixo as idéias quase sempre reunidas debaixo de uma espécie de marquise no alto da região frontal. Não todas: as mais salientes.
Ao despertar , ainda as encontro lá, sempre se mexendo e discutindo.
Ora, não se pode dormir tranquilo com essas reuniões à entrada e saída do sono. Parece uma perseguição. Não adianta alegar que o sono é o meu único domínio de fato – elas sabem disso; o país das transparências onde impera o regime de vapor e sonho que a vigília nunca me trouxe .
Por que então se intrometem?
É de ver o que ficam fazendo.Cochicham, brigam, repetem mil vezes coisinhas do dia. Ainda é bom quando me esquecem e se limitam a perturbar-me o repouso , batendo e arranhando as paredes do crânio.
Pior é quando me fazem subir para tomar parte na discussão. Põem-se a criticar-me, a fazer picuinhas. E como sujam a sala!
Algumas me lisonjeiam, fazem propostas agradáveis. Quando começo a iludir-me ,descubro que estão zombando de mim,encho-me de raiva.
E não sei por que ainda fico como imbecil a acompanhar-lhes a pantomima .
Às vezes parece mesmo um balé,um balé de mau gosto, inspirado no que há de mais vulgar das minhas horas perdidas. Chego até a distrair-me, por que não dizê-lo?
Mas isso não é vida.
Quando vem o sono já não me sinto à altura ...E é uma noite a menos, noite estragada. E todo um programa de sonhos mais uma vez adiado.
Eis a que fico reduzido depois de tais reuniões.
Não é só debaixo da grande marquise que elas se realizam. Há outras, em pontos não bem localizados. Atrás da cabeça, por exemplo, há uma. É a mais obscura, a que se verifica mais distante de mim.
Perto do rim esquerdo, costuma haver também; talvez a menos freqüentada, mas por um grupo suspeito. A dos testículos e imediações só termina com a audiência da companheira... Em geral, essas ideias têm suas nascentes na cabeça. Muitas, porém derivam dos intestinos. E não sei como conseguem figurar nas reuniões lá de cima. São ávidas,levianas e têm muito da cor dos acontecimentos do dia. Só dão aborrecimentos.
Admira que meu sangue se preste a transportá-las.
Há outras que provêm de regiões mais opacas. Aparecem como nebulosas, não sei bem o que querem. São uma espécie de larvas que se criam numa zona em que sempre faz noite na gente, e onde sei existir o lago ou poço dessas algas que são vistas em meus olhos, quando paradas de espanto ou de terror.Tudo isso me invade, me desorganiza.
Até à madrugada, passam grupos nômades em correria.
Oh, como conseguir a unidade em meu ser? Como pacificar a minha federação?
(Em Cadernos de João -1957)Aníbal Machado
ótimo!, Ladyce
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