Pular para o conteúdo principal

A vingança, Fernando Sabino


     O irmão mais novo foi assassinado, numa rixa de botequim lá na cidade. A notícia lhe chegou logo, trazida à fazenda por um de seus vaqueiros. O assassino havia fugido, tomando rumo ignorado.
     - Se o senhor quiser, nós vamos caçar o homem, patrão.
     -Deixa – ordenou ele: Isso é serviço para mim.
     Na manhã seguinte, depois do enterro, montou no seu cavalo e partiu. Virou a região de pernas para o ar, colhendo informações aqui e ali: eram parcas as notícias do assassino. Acabou perdendo seu rastro e ao fim de uma semana regressou, estropiado, sujo, barba por fazer:
     - Não faço esta barba enquanto não der cabo dele – jurou.
     A mulher sugeriu-lhe que ao menos tomasse um banho. Recusou-se:
     - Quando raspar a barba eu tomo.
     E se deixou ficar, como estava, estirado na rede. Nos dias que se seguiram não fez outra coisa senão treinar pontaria, dando tiros de revólver no terreiro. Largou de lado a administração da fazenda. Em vão o pessoal o procurava, atrapalhado.
     - Não faço mais nada enquanto não liquidar o homem.
     Parecia um fantasma, andando pelos cantos, com sua idéia fixa na cabeça: sujo, barbado, descabelado e fedorento. Ninguém tinha coragem de se aproximar dele. À tarde deitava-se na rede, uma nuvem de mosquitos  o rodeava. Dali mesmo praticava tiro ao alvo: o mourão de porteira já estava todo marcado de bala.
     - Parece um bicho – queixava- se a mulher, tentando demovê-lo: - tira essa idéia desgraçada da cabeça!
     - Eu jurei que acabava com ele: então não sou homem de cumprir juramento¿
     - Acaba com ele mas toma um banho, homem de Deus!
     Às vezes chegava uma notícia e ele desaparecia por uns dias. Regressava cada vez mais sujo e barbado:
     - Esteve em Paracatu: escapou por pouco.
     Descansava uma semana e tornava a sair. Voltava, desanimado.
     -Dizem que fugiu para Goiás. Vou até o fim do mundo.
     No dia em que vieram lhe dizer que o homem havia morrido em Goiás, e de morte morrida, quase perdeu a cabeça:
     -E agora? Estou liquidado. Nunca mais faço a barba. Nunca mais tomo banho.
     Rogou duas pragas, cuspiu para o lado, passou a mão no revólver e saiu.
     No botequim da cidade, pôs-se a beber cachaça junto ao balcão.
     - Dizem que o homem morreu...
     - Estou me danando.
     - O senhor está vingado.
     - Vingado uma ova: não matei ele, essa é boa!
     - O senhor não pode matar um morto.
     - Mas também não posso mais fazer a barba.
Quem é aquele frajola?
     Numa das mesas ao fundo um cometa, recém chegado na cidade, contava lorotas para dois capiaus. Vestia um terninho tropical, usava sapato branco e marrom, camisa riscadinha e gravata borboleta de bolinhas. Tinha o cabelo esticado a brilhantina e era o que se podia mesmo chamar de frajola: usava óculos raibã, lenço colorido no bolso do paletó, e com gestos delicados ia enchendo de fumo americano um cachimbo americano de espuma-do-mar. Viajava de cidade em cidade negociando miraculosas mercadorias:
     -Vejam o meu caso – dizia no momento, todo pernóstico: -Também saí de um lugarejo como este e hoje sou isto que vocês vêem.
     Junto ao balcão o barbudo o observava.
     - Quem é esse boneco? -repetiu, carrancudo: - Não vou com a cara dele.
     - Chama-se Clodomir – informaram-lhe.
     - Clodomir? Isso é lá nome de gente?
     Sacou do revólver, e antes que o impedissem, fez pontaria,  atirou. A bala acertou em cheio no cachimbo que Clodomir acabava de levar à boca, espatifando-o no ar. A estupefação foi geral. Clodomir se deixou ficar, estatelado de susto. O homem soprou calmamente a fumaça da arma e colocou-a no coldre:
     - Quer saber de uma coisa¿ Estou vingado.
     No mesmo dia tomou um banho, fez a barba.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.