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Para Inglês Ver, Fernando Sabino

    Tenho de ir a bordo de um navio inglês despedir-me de um amigo. Pois nada mais fácil: basta passar na Polícia Marítima e tirar a respectiva licença.
    A Polícia Marítima é ali na estação rodoviária: pego o elevador e subo até lá. Encontro uma funcionária tranquila e muito boazinha à minha espera. Está ali para isso, inteiramente às minhas ordens. É paga para servir-me.
    -Desejo ir a bordo de um navio - explico.
    - O senhor tem carteira de identidade?
    Tenho: já fui fichado e sujei os dedos de tinta, como um criminoso qualquer - em Minas Gerais, já se vão alguns séculos. O retratinho positivamente é de outra pessoa: um jovem magro, de olhos assustados para a objetiva e para a vida.
    A moça pega a minha carteira, olha, deixa em cima da mesa e então vai no fundo da sala consultar um sujeito, provavelmente chefe dela. Ao fim de meia hora de consulta começo a perder a paciência e vou até lá para saber qual é o embaraço. Não há embaraço algum, me explicam com um sorriso, estamos apenas conversando.
    - Escuta essa - diz o chefe, que é um sujeito jovial, pondo-me a mão no ombro.
    Tenho de escutar, já com o riso engatilhado para qualquer eventualidade, a última do português.
    Não é boazinha?
    Ótima. Mas por falar nisso, o navio...
    Outra anedota - quem conta desta vez é o funcionário magro que estava debruçado no balcão e que veio de lá muito lampeiro para renovar o repertório. Espero com paciência o final, um final idiota, para introduzir com jeito a minha humilde reividicação:
    - Vocês me desculpem, mas o navio vai partir...
    - É isso mesmo, o navio - volta-se a moça solícita: - como é o nome?
    - Do navio?
    - Não, o seu.
    Digo meu nome, ela toma nota num papelzinho, depois de vacilar um pouco: este nome não me é estranho... Já não sei por que diabo ela pediu minha carteira de identidade, que ficou la, em cima da mesa.
    - Agora o senhor tem de ir à Inspetoria.
    Apanho a carteira, a papeleta que ela me estende, agradeço e saio. Ao fundo o chefe e o magrelo ficam trocando tapinhas, às gargalhadas.
    A Inspetoria é na Avenida Rodrigues alves. Precipito-me escada abaixo, saio correndo pela rua: daqui a pouco o navio vai mesmo sair, já estou ouvindo um apito. Na Inspetoria um velho mal-encarado examina o papelzinho, e, sem levantar os olhos, pergunta se trouxe selo. Não, não trouxe, o senhor me desculpe mas eu não sabia que era preciso trazer selo. O rapazinho da outra mesa espicha o pescoço: o senhor pode comprar ali na Alfândega, recomenda-me. Leve trocado: se não tiver, convém trocar antes no bar da Praça Mauá.
    - Lá só vendem até as duas e meia - torna o velho:  - O senhor tem de ficar esperto, são quase duas e meia.
    Fico esperto, saio em disparada para comprar o selo, volto botando a alma pela boca.
    - Agora tem de ir ao segundo andar para o carimbo. Enfrento uma fila em frente ao guichê, porque parece que todo mundo do Rio de Janeiro resolveu vir tirar licença para entrar em navio.
    - Licença para navio? Não é aqui não: ali no outro guichê.
    No outro guichê não tem ninguém. Pergunto ao funcionário dependurado ao telefone quem é que vai carimbar essa joça - e lhe estendo o papel.
   - Me dá aqui que eu mesmo carimbo.
   Pega o papel e, sem largar o telefone, estende um braço quilométrico por entre a grade do guichê, apanha o carimbo, dá uma carimbada decidida.
    - Pronto. Agora só falta a assinatura do inspetor.
    Isso mesmo: eu ia me esquecendo do mais importante, que é justamente a assinatura do inspetor.
Que é no primeiro andar. Saio trotando pelas escadas até o primeiro andar, conformado com a minha sorte: e se o inspetor tiver saído para tomar café? Melhor desistir do navio logo de uma vez, também por que diabo faço tanta questão de ir a bordo? Por que não me despedi de meu amigo ontem na casa dele?
    Mas o inspetor está, parece até que à minha espera. Alegre, bonachão, nunca ví ninguém assinar um papel com tamanha rapidez:
    - Pronto: com isso o senhor entra no navio que quiser.
    - Licença assinada, selada, carimbada e sacramentada, saio correndo debaixo do sol quente até o navio. Não, ainda não partiu: está lá me esperando, posso ficar tranquilo.
    E então, não fosse inglês o navio e ainda assim chega é a hora de verificar a existência de alguma coisa feita para inglês ver: ninguém - absoluta, total, completa e definitivamente ninguém, nem inglês nem brasileiro - me pede que exiba qualquer espécie de licença para subir a bordo.

(in A Companheira de Viagem,Record 1965)

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