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A Mala, Sergei Dovlátov

     Na Seção de Vistos e Registros, a cadela me diz:
     - Cada passageiro tem direito a três malas. Esta é a norma. É a instrução especial do ministério.
     Não fazia sentido contra-argumentar. Mas, é claro, contra-argumentei:
     - Só três malas?! E o que fazer com as coisas?
     - Por exemplo?
     - Por exemplo, a minha coleção de carrinhos de corrida.
     - Venda - replicou, sem dar atenção, a burocrata.
     Depois acrescentou, franzindo um pouco a testa:
     - Se o senhor não estiver satisfeito com alguma coisa, redija uma reclamação.
     - Estou satisfeito - digo.
     Depois da prisão, eu estava satisfeito com tudo.
     - Pois então seja mais moderado...
     Em uma semana já havia feito a mala. E, como se verificou, bastava-me apenas uma única mala.
     Por pouco não chorei de dó de mim mesmo. Tenho 36 anos. Durante 18 deles, trabalhei.       
     Gasto tudo o que ganho. Tenho, como descobri, alguns bens. E o resultado é uma mala.    
     Ainda que de tamanho bem modesto. Quer dizer que sou um miserável? Como isso foi acontecer?!
     Livros? Mas eu só tinha basicamente livros proibidos. Daqueles que não deixam passar na alfândega. A solução foi distribuí-los entre amigos, com o chamado "arquivo".
     Manuscritos? Já mandei faz muito tempo para o Ocidente, por meios secretos.
     Mobília? A escrivaninha, consignei-a numa loja de móveis usados. A cadeira me foi tomada pelo artista Tchóguin, que até então se virava com caixotes. O resto eu joguei fora.
     E assim parti com uma mala. A mala era de madeira compensada, com revestimento de tecido e reforços niquelados nos cantos. Não tinha cadeado. O jeito foi amarrá-la com barbante.
Sergei Dovlátov: Russia 1941- 1990
     Em algum tempo no passado, viajei com ela aos acampamentos dos pioneiros. Na tampa, estava escrito a tinta: "Grupo Jovem. Serioja Dovlátov". Perto disso, alguém riscou amigavelmente: "Limpador de merda". O tecido estava rasgado aqui e ali.
     Do lado de dentro da tampa, havia fotografias coladas.     
     Rocky Marciano, Armstrong, Joseph Brodsky, Lollobrigida numa roupa transparente. O funcionário da alfândega tentou descolar a Lollobrigida à unha. Só conseguiu arranhar.
     Mas em Brodsky ele não tocou. Tudo o que fez foi perguntar: "Quem é esse?". Respondi que era um parente distante.
     No dia 16 de maio, cheguei à Itália. Fiquei hospedado no hotel Dina, em Roma. A mala, enfiei-a debaixo da cama.
     Logo recebi um pagamento qualquer de revistas russas. Comprei sandálias azuis, jeans flanelados e quatro camisas de linho. Assim, não abri a mala.
     Em três meses, estava de mudança para os Estados Unidos. Para Nova York. De início, morei no hotel Rio. Depois, com amigos no Flushing. E, finalmente, aluguei um apartamento num bairro decente. Botei a mala num canto distante do armário embutido. Não soltei o barbante.
     Passaram-se quatro anos. Minha filha tornou-se uma jovem americana. Nasceu meu filho.   
     Já adolescente, começou a aprontar. Um dia, minha mulher, sem paciência, gritou:
     - Já para o armário!
     Meu filhote passou uns três minutos no armário. Depois eu o libertei e perguntei:
     - Você ficou com medo? Chorou?
     - Não. Sentei na mala.
     Então eu tirei a mala. E a abri.
     Na parte de cima tinha um jaquetão bem decente, com duas fileiras de botões. Para entrevistas, simpósios, leituras, recepções solenes. Suponho que serviria também para uma cerimônia do Prêmio Nobel.
     Mais adiante, uma camisa de algodão e sapatos embrulhados em papel. Debaixo deles, uma jaqueta de veludo cotelê com forro de pele sintética. À esquerda, um chapéu de inverno de foca falsa. Três pares de meias finlandesas de crepe. Luvas de chofer. E, para terminar, um cinto de oficial feito de couro.
     No fundo da mala, havia uma página do "Pravda" de maio de 1980. Na manchete, lia-se:     "Vida longa aos estudos!". No centro, um retrato de Karl Marx.
     Ainda estudante primário, eu adorava desenhar líderes do proletariado mundial.  Sobretudo Marx. Era rabiscar um borrão qualquer -e já ficava parecido...
     Examinei a mala vazia. No fundo, Karl Marx. Na tampa, Brodsky. Entre eles, uma vida perdida, sem valor, a única.
     Fechei a mala. Dentro dela, rolavam retumbantes as naftalinas. As coisas, em pilhas variadas, estavam na mesa da cozinha. Era tudo o que eu tinha acumulado em 36 anos. Por toda a minha vida na pátria. Pensei: "Não é possível que isso seja tudo!". E respondi: "Sim, isso é tudo".
      E então, como se diz, apoderaram-se de mim as memórias. Possivelmente elas se esconderam nas pregas daquele trapo miserável. E agora escapavam para fora. Memórias que acabariam se chamando "De Marx a Brodsky". Ou até, quem sabe, "O que Eu Adquiri".   Ou, digamos, apenas "A Mala".
     Mas, como sempre, o prólogo tomou mais que o esperado.

Comentários

  1. Muito bom, Regina. Que pena que o autor morreu jovem; poderia ter escrito tanta coisa boa se mais vivesse. E continuo abismada com o poder dos russos de dizer muito em poucas palavras! A frase abaixo é o máximo:
    "Examinei a mala vazia. No fundo, Karl Marx. Na tampa, Brodsky. Entre eles, uma vida perdida, sem valor, a única."
    Obrigada por postar!

    Marilda

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  2. Essa frase foi brilhante. Emociona e nos coloca na situação do autor.
    Realmente os russos são muito bons.

    beijo.

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  3. Magnífico! Não conhecia.
    obrigado.

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