Pular para o conteúdo principal

Congresso dos Ventos, Joaquim Cardozo


Na várzea extensa do Capibaribe, em pleno mês de agosto
Reuniram-se em congresso todos os ventos do mundo;
Àquela planície clara, feita de luz aberta na luz e de amplidão
[cingida,
Onde o grande céu se encurva sobre verdes e verdes, sobre lentos
[telhados,
Chegaram os mais famosos, os mais ilustres ventos da Terra:
– Mistral, com seus cabelos de agulha, e os seus frios de dedos
[finos,
– Simum, com arrepiadas, severas e longas barbas de areia
[quente,
– Harmatã, em fúrias gloriosas e torvelinhos, trazidos da Costa
[da Guiné,
Representante das margens do Nilo credenciou-se Cansim,
E Garbino, enviado das praias catalãs.
Vieram as Monções das margens do Oceano Índico,
Os ventos da Tundra siberiana vieram. . .
E os Alísios desceram do Equador, clandestinos,
Num grande transatlântico.
Chegaram ainda os ventos da América:
– Barinez, respirando doçuras de rios azuis, afluentes do
[Orenoco,
– Pampeiro, eremita e solidão de horizontes sub-andinos,
– Minuano, assobiando longamente a tristeza ritmada das
[coxilhas..
Também os ventos nordestinos se acharam presentes:
O Nordeste e o Sudeste; os ventos Banzeiros,
O Aracati das praias cearenses,
O vento Terral, velho boêmio das madrugadas.
Ventos, muitos e todos, ventos de todos os desertos,
De tempestades selvagens, de escuramente outonos. . .
Nesse congresso em tantas veemências se afirmaram
Quanto em glória e rebeldia se exprimiram. . .
Com açoites e eloqüentes rajadas falou Harmatã;
Com citações de Esopo e de La Fontaine
Comparou as vantagens da energia do sol e a do vento,
Descreveu com minúcia os modernos fornos solares
E admitiu o emprego futuro de ventos magnéticos.
Depois que Cansim relembrou o seu feito guerreiro
Envolvendo em altas nuvens de areia as legiões do rei Cambises
– Isto, há mais de dois mil anos –
Garbino repetiu com sopros noturnos e vagarosos
A velha história do abandono e desprezo dos ventos
Agora, solitários, vagando por todos os quadrantes.
A assembléia inteira levantou-se amotinada;
Um vendaval sem freio, um furacão,
Percorreu aquelas instâncias de planície tranqüila;
Uma onda de revolta se ergueu contra os motores,
Contra os ventiladores e os túneis de vento.
Mas apesar daquele tumultuoso debater de línguas meteóricas
Podia-se ouvir muito bem a voz lamentosa do Nordeste:
– Eu que, há trezentos anos, desembarquei das velas do almirante
[Loncq
Na praia de Pau Amarelo,
Que tremulei nas flâmulas e nas bandeiras das naus de D. Antônio
[de Oquendo
Aqui estou, nesta várzea, reduzido a professor de meninos:
Hoje vivo ensinando a empinar papagaios. . .
Voltando a calma, em alentos de aragens murmuradas,
Terral contou como ajudava as plantas nos amores:
– Levando nas dobras do seu manto o pólen das anteras,
Velivolvendo e suspirando entre ramagens.
Por fim, sucederam-se festas, danças de roda. . .
Músicas e cantos de longes mares tempestuosos,
Rodopios, volteios, caprichos, remoinhos, piões e parafusos. . .
– Com sestros de capoeira exibiram-se o vento Banzeiro e o
[Sulão.
Barinez leu uma mensagem de Romulo Gallegos,
Minuano disse um poema de Augusto Meyer.
E já pelos dias finais daquele mês todos partiram. . .
Erguendo o seu vôo sobre as nuvens varzinas
Regressaram, um após outro,
Para as noites e as tormentas das suas terras natais.
O último que se pôs a caminho foi o vento Aracati:
– Cortou uns talos de chuva
Com eles fez uma flauta
E se foi, tocando e dançando,
E se foi pela estrada de Goiana.

Nota: o blog manteve a grafia original

Comentários

  1. Julia Deshayes Herédia25 de fevereiro de 2013 às 10:50

    Um dos mais belos e engenhosos poemas de que tenho conhecimento.É uma lástima que seja tão pouco conhecido. Soberbo!

    ResponderExcluir
  2. Bom dia, Júlia.
    Tento ao máximo trazer para cá textos pouco divulgados. O que tem em abundância no Google, não tem graça. Aceito sugestões e colaboração também. Abraço

    ResponderExcluir
  3. Vi esse poema agora com Bethania na Radio Batuta chorei de emoção

    ResponderExcluir
  4. Maria Bethania tem muito bom gosto e lê muito bem. Interpreta, na verdade, qualquer poema, não é?

    ResponderExcluir

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.