Estou relendo um livro fininho que obriga a pensar, reavaliar meu país e, mais que isso, minha conduta diante dos fatos. Corri à estante tão logo soube do falecimento do pensador Stéphane Hessel. Ele foi um dos redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Stéphane Hessel (95) é o Vovô Francês Indignado sobre quem o blog Livro Errante, falou em 2011.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Um Rasgo de Paixão, Francisco Borges Neto.
Eu acabo de começar minha terceira
série de sessenta abdominais quando ouço a chave girar na porta de entrada. Ela
chega até a sala e atira a bolsa em cima da mesa. É inconfundível o choque do
metal da sua arma no tampo de vidro. Aproxima-se e percebo que me fita com o ar
de quem mal consegue disfarçar o ódio, e tenta exibir um desprezo que não
existe. Não falo nada, me limito a manter a respiração compassada e ruidosa ao fingir
concentração no exercício. Vista nesta perspectiva, de baixo pra cima, ela
parece bem mais alta do que realmente é, as coxas parecem mais grossas e o cabelo
fica mais bonito. Próximo à minha cabeça, no entanto, está fincado o seu scarpin
vermelho, que somado ao seu confuso semblante me deixa um tanto incomodado. Mas
não demora e ela some no corredor após soltar um daqueles soluços típicos de quem
vai chorar. A pancada na porta do quarto corre pelo assoalho e retumba nos meus
ouvidos. Fico preocupado, bem ou mal ela ainda é a minha garota. Temos, também,
planos em comum, somos comparsas, cúmplices fiéis nos nossos negócios: não
vivemos um sem o outro. E além de tudo – apesar de ser frio, cínico e às vezes
cruel – uma mulher chorando sempre mexe comigo, meu ponto fraco.
Termino a série, me levanto do chão e contraio rapidamente a
musculatura: os gomos do abdome saltam aos olhos. Chega uma mensagem do Cambota
no meu celular: a barbara levou chumbo ta
mau internou nas clinicas. Fazer o que agora? Seja lá a merda que aconteceu
já não posso fazer nada. Melhor cuidar de outros destinos. Pego a minha Glock
9mm, instalo o silenciador e vou averiguar o que se passa com a Elisa. Não faço
nada desarmado, nunca se sabe.
Giro a maçaneta sem sucesso. Bato à
porta do quarto. Nada. Bato mais forte. Nada. Começo a esmurrar e grito:
– Porra, Elisa, abre essa porta!
– Não! – a voz esganiçada, está
viva.
– Por quê?
– Porque não!
Enquanto ganho tempo fazendo rodeios
insistindo para que ela ceda, penso friamente no que fazer. Despejar a força
bruta do meu corpanzil na madeira? Desferir uma sequência violenta de chutes? Estourar
a tiros a fechadura? Sim, esta última solução é a melhor, não posso mais perder
tempo porque ela avisa:
– Eu vou me matar!
Imediatamente empunho a Glock e tomo
uma certa distância de segurança. Efetuo meia dúzia de disparos mesmo percebendo
que as duas primeiras balas já haviam arrombado a porta. Além de preocupado
estou puto. Porra, eu estava malhando tranquilamente e agora me vejo aperreado
com essas duas.
Desloco a porta com cuidado e vejo a
minha garota de pé encostada na parede oposta do quarto. Seu corpo trêmulo e o rosto
lavado de choro me desconcertam. Na mão direita ela segura a Randall modelo fighting stiletto que eu havia dado a
ela no dia dos namorados. A faca, ou mais apropriadamente o punhal, está apoiada
de modo perpendicular à sua carótida, a qual pulsa com vigor e dá uns trancos
ritmados na lâmina. Merda, por que essa cena? O Japa havia desbaratado nosso
esquema e ela ia, estoica, para o sacrifício? Não creio na inteligência dele.
Ou alguém que a estava acampanando resolveu aparecer e ameaçar sua filha? Improvável,
Elisa é das nossas melhores. Num átimo fui capaz de pensar em várias hipóteses.
Bárbara?! Seria possível? Não... Me recuso a acreditar que fosse por causa
daquela vadia.
A partir de agora é tudo muito rápido. Eu, nervoso, seguro a
pistola sem firmeza e tento manter o ombro de Elisa sob a mira – antes um ombro
aos pedaços que um pescoço rasgado ao meio. É tudo muito rápido. Meus olhos, aqueles
olhos azuis que ela bem conhece e ama tanto, dizem que qualquer movimento
brusco e eu atiro.
Foi tudo muito rápido.
Para conhecer mais sobre Francisco Borges Neto leia também:
Soneto da Esperança,
Bingo, está nascendo um novo autor,
Dia da Poesia,
Vencidas As Primaveras Insípidas.
Para conhecer mais sobre Francisco Borges Neto leia também:
Soneto da Esperança,
Bingo, está nascendo um novo autor,
Dia da Poesia,
Vencidas As Primaveras Insípidas.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
O Ator, Carlos Drummond de Andrade
Era uma escravo fugido
por si mesmo libertado.
Meu bisavô foi à Mata
vender burro brabo fiado.
Chega lá, deita no rancho
para pitar descansado.
Duzentas, trezentas léguas
em macho bem arreado,
por muito que um homem seja
de ferro, fica estrompado.
"Vou dormir, sonhar meu sonho
de cobre e mulher trançado.
Por favor ninguém me amole
que trago dependurado
no arção da sela meu coldre
com pau-de-fogo. Obrigado."
"Dormir tão cedo, meu amo?
se no rancho do outro lado
do rio tem espetac'lo
que há de ser de vosso agrado.
Faz três dias ninguém cuida
na roça e no povoado
senão de ver esta noite
A Vingança do Passado."
Nem mais se recorda o velho
que estava mesmo pregado.
De noite à luz do candeeiro,
o drama tem outra face.
É como se à letra antiga
outro valor se juntasse.
O rosto do ator imerge
de repente na penumbra
e uma pungência maior
entre cangalhas ressumbra.
Metade luz e metade
mistério, a peça caminha
estranha.Dormem lá fora
a tropa e a besta madrinha.
Na noite gelada a história
fala de nobres de Espanha
e do dote de uma virgem
conspurcada pela sanha
caprina de Dão Fernando.
E depois de mil malícias
o vil exclama: "Calor,
ai que calor que abrasa um conde!"
"Que ouço? Que fuça é esta?"
Meu avô salta do banco.
O fidalgo enxuga a testa
que a luz devassa, mostrando
a estelar cicatriz
do seu escravo fugido
bem por cima do nariz.
Empurrando a uns e outros,
meu avô acode à cena
e brandindo seu chicote
(pois anda sempre com ele
em roça, brejão ou vila)
fustiga o conde sem pena:
"Bacalhau, ai bacalhau
que te abrase o rabo, diabo.
Acaba esta papeata
senão sou eu que te acabo."
Era uma vez um artista
pelo berço mui dotado.
Ficou a noite mais trista
na tristidão do calado.
Cada qual se retirando
achava bem acertado.
Cumpre-se a lei. Está escrito:
a cada um o seu gado.
Para um escravo fugido
não há futuro, há passado,
pelo que lá vai o conde
tocando o burro e vigiado.
A tropa sai caminhando
pelo segundo reinado.
In: ANDRADE,Carlos Drummond de,Seleta em Prosa e Verso, 6ª edição, Rio de Janeiro, Record 1985, págs.145-147
por si mesmo libertado.
Meu bisavô foi à Mata
vender burro brabo fiado.
Chega lá, deita no rancho
para pitar descansado.
Duzentas, trezentas léguas
em macho bem arreado,
por muito que um homem seja
de ferro, fica estrompado.
"Vou dormir, sonhar meu sonho
de cobre e mulher trançado.
Por favor ninguém me amole
que trago dependurado
no arção da sela meu coldre
com pau-de-fogo. Obrigado."
"Dormir tão cedo, meu amo?
se no rancho do outro lado
do rio tem espetac'lo
que há de ser de vosso agrado.
Faz três dias ninguém cuida
na roça e no povoado
senão de ver esta noite
A Vingança do Passado."
Nem mais se recorda o velho
que estava mesmo pregado.
De noite à luz do candeeiro,
o drama tem outra face.
É como se à letra antiga
outro valor se juntasse.
O rosto do ator imerge
de repente na penumbra
e uma pungência maior
entre cangalhas ressumbra.
Metade luz e metade
mistério, a peça caminha
estranha.Dormem lá fora
a tropa e a besta madrinha.
Na noite gelada a história
fala de nobres de Espanha
e do dote de uma virgem
conspurcada pela sanha
caprina de Dão Fernando.
E depois de mil malícias
o vil exclama: "Calor,
ai que calor que abrasa um conde!"
"Que ouço? Que fuça é esta?"
Meu avô salta do banco.
O fidalgo enxuga a testa
que a luz devassa, mostrando
a estelar cicatriz
do seu escravo fugido
bem por cima do nariz.
Empurrando a uns e outros,
meu avô acode à cena
e brandindo seu chicote
(pois anda sempre com ele
em roça, brejão ou vila)
fustiga o conde sem pena:
"Bacalhau, ai bacalhau
que te abrase o rabo, diabo.
Acaba esta papeata
senão sou eu que te acabo."
Era uma vez um artista
pelo berço mui dotado.
Ficou a noite mais trista
na tristidão do calado.
Cada qual se retirando
achava bem acertado.
Cumpre-se a lei. Está escrito:
a cada um o seu gado.
Para um escravo fugido
não há futuro, há passado,
pelo que lá vai o conde
tocando o burro e vigiado.
A tropa sai caminhando
pelo segundo reinado.
In: ANDRADE,Carlos Drummond de,Seleta em Prosa e Verso, 6ª edição, Rio de Janeiro, Record 1985, págs.145-147
sábado, 23 de fevereiro de 2013
Crônica cantada: Pressentimento (essa música não tem rima)
Elton Medeiros e Hermilo Belo de Carvalho
Ai ardido peito
Quem irá entender o seu segredo
Quem irá pousar em teu destino
E depois morrer de teu amor
Ai mas quem virá
Me pergunto a toda hora
E a resposta é o silêncio
Que atravessa a madrugada
Vem meu novo amor
Vou deixar a casa aberta
Já escuto os teus passos
Procurando o meu abrigo
Vem que o sol raiou
Os jardins estão florindo
Tudo faz pressentimento
Que este é o tempo ansiado
De se ter felicidade
Quem irá entender o seu segredo
Quem irá pousar em teu destino
E depois morrer de teu amor
Ai mas quem virá
Me pergunto a toda hora
E a resposta é o silêncio
Que atravessa a madrugada
Vem meu novo amor
Vou deixar a casa aberta
Já escuto os teus passos
Procurando o meu abrigo
Vem que o sol raiou
Os jardins estão florindo
Tudo faz pressentimento
Que este é o tempo ansiado
De se ter felicidade
Nota do blog: quando uma música é de mais de um autor, o primeiro nome deve ser o de quem fez a melodia. Assim, no caso da bela Pressentimento, Elton Medeiros colocou melodia na letra feita por Hermilo Belo de Carvalho.
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
Elisa, a irmã Lispector

O Diário de Pernambuco do Recife trouxe matéria sobre Elisa, a Lispector mais velha que foi ofuscada por Clarice, mas que tem brilho próprio. Livroerrante touxe, ainda em 2010, um conto de Elisa Lispector, extraido de seu livro Inventário. No ano seguinte o LivroErrante noticiou Livro Novo No Pedaço que é o livro onde Elisa Lispector fala da família desde a vinda da Ucrânia. Retratos Antigos tem a história dos Lispector contada pela irmã mais velha de Clarice Lispector.
Conforme disse o jornalista Fellipe Torres no Diário de Pernambuco, Elisa Lispector tem obra pouco estudada, por isso deixo aqui a indicação mais confiável para quem quiser conhecer essa escritora de inegável talento: Instituto Moreira Sales.
Romances:
Além da Fronteira (1945)
No Exílio(1948)
Muro de Pedras (1963)-prêmio José Lins do Rego e Coelho Neto, pela A.B.L
Ronda Solitária (1954)
A Última Porta (1975)
Corpo-a-Corpo (1983)
Coletânea de contos:
Sangue No sol (1970)
O Inventário (1977)
Tigre de Bengala (1985)
Os livros acima mencionados só podem ser encontrados me sebos ou bibliotecas, à exceção de No Exílio que foi reeditado em 2005.
Seu último livro Retratos Antigos, é um trabalho realizado por Nádia Batllela Gothib, da UFMG. Elisa Lispector faleceu em 1989, aos 78 anos no Rio de Janeiro.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Senhoras, Anton Tschecov
Feodor Petrovitch, diretor dos educandários do
município N..., que se tinha na conta de homem justo e generoso, certo dia
recebia em seu escritório o professor Vremenski.
-
Não, senhor Vremenski – dizia ele – a aposentadoria é inevitável. Com uma voz
como a sua é impossível continuar no emprego de professor. Mas como foi que
sumiu sua voz?
- Tomei cerveja gelada, estando suado... rouquejou o professor.
-
Mas que lástima! Um homem trabalha e serve catorze anos, e de repente um azar
destes! É o diabo, a pessoa ter de quebrar uma carreira por causa de uma
ninharia qualquer! O que é que o senhor tenciona fazer agora?
O
professor não respondei.
-
O senhor tem família? perguntou o diretor.
-
Mulher e dois filhos, Vossa excelência... – rouquejou o professor.
Fez-se
um silêncio. O diretor levantou-se de
escrivaninha e mediu a sala a passadas, de canto a canto, perturbado.
- Não
consigo imaginar o que fazer com o senhor! – disse ele. O senhor não pode mais
lecionar e ainda não alcançou o tempo mínimo para uma pensão... e abandoná-lo à
própria sorte, soltá-lo ao Deus dará, não é possível. O senhor é para nós
pessoa da casa, trabalhou aqui catorze anos – portanto, o nosso papel é
ajudá-lo... Mas ajudar como? O que é que eu posso fazer pelo senhor?
Fez
se outro silêncio; o diretor andava e pensava, e Vremensk, esmagado pela sua
desgraça, sentado na beira da cadeira, pensava também. De repente, o rosto do
diretor iluminou-se e ele até estalou os dedos.
- Estranho que não tenha pensado nisso logo! – começou ele falando depressa –
Escute aqui, eis o que eu lhe posso oferecer... Na semana que vem, o
escriturário do nosso orfanato vai sair, aposentado. Se o senhor quiser, pode
ficar com o lugar dele! Aqui está.
-Vremenski,
que não esperava tamanha benevolência, também se iluminou.
-Excelente-
disse o diretor. – escreva o seu requerimento hoje mesmo...
Tendo
despachado Vremenski,Feodor Petrovitch sentiu alívio e até satisfação: diante
dele, já não se atravessava a figura encolhida do pedagogo afônico, e era-lhe
muito agradável sentir que, oferecendo a Vremenski a vaga livre, ele agira com
justiça e conscienciosamente, como um homem direito e bom. Mas esta boa
disposição durou pouco. Quando ele voltou para casa e sentou-se para almoçar,
sua mulher, Nastácia Ivánova, lembrou de repente:
-
Ah, sim quase que eu esqueço! Ontem veio visitar-me Nina Sergueievna e pediu
para interceder por um rapaz. Dizem que no nosso orfanato vai-se abrir uma
vaga...
-Sim,
mas este lugar já está prometido a outra pessoa – disse o diretor,carrancudo. –E
você conhece minha regra: nunca dou empregos por proteção.
-Eu
sei, mas para Nina Sergueivna creio que se pode abrir uma exceção. Ela nos quer
bem como se fôssemos parentes de sangue, e nós nunca fizemos nada de bom para
ela, até agora. Nem pense Fêdia, em recusar! Com estes seus caprichos, você
ofende tanto a ela como a mim mesma.
-
E quem é que ela recomenda?
-
Polzúkhin.
-
Polkúkhim? aquele que fez o papel de Tchátski no grêmio, no Ano Novo? aquele dandi? Por nada no mundo.
O
diretor parou de comer. – Nem por nada! – repetiu ele.- deus me livre!
-
Mas por quê?
-
Compreenda, meu bem, que, se um rapaz moço não age diretamente, mas por
intermédio de mulheres, isso significa que ele não presta!
-Por
que não vem ele mesmo falar comigo?
Depois
do almoço, o diretor deitou-se no sofá, no seu gabinete, pôs-se a ler a ler os
jornais e cartas que chegaram.
“
Caro Feodor Petrovitch! – escrevia-lhe a mulher do prefeito. Uma vez o senhor
me disse que eu tenho grande intuição e que sou uma conhecedora de homens.
Agora o senhor terá a oportunidade de verificar isto na prática. Por estes dias
irá procurá-lo, para se candidatar à vaga de escriturário do nosso orfanato, um
certo K.N. Polzúkhin, a quem conheço como moço de excelentes qualidades. O rapaz
é muito simpático. Interessando-se por ele, o senhor se convencerá...”, etc.
- Por nada no mundo! Repetiu o diretor- Deus me livre!
Depois
disso, não passava dia sem que o diretor não recebesse cartas, recomendando Polzúkhin. E numa bela manhã, apareceu o próprio Polzúkhin em pessoa, um jovem
robusto, de rosto escanhoado de jóquei, com um par de sapatos pretos, novos...
- Assuntos referentes ao trabalho, eu não atendo aqui, mas sim no meu escritório –
disse o diretor em tom seco, tendo ouvido o pedido do rapaz.
-Desculpe
excelência, mas os nossos amigos comuns aconselharam-me a procurá-lo justamente
aqui.
-
Hum!.. resmungou o diretor, fitando com ódio os pontudos sapatos pretos do
visitante.
– Pelo que estou informado – disse ele – o seu pai é um homem de
posses e o senhor não passa necessidades; que precisão tem, PIS, o senhor de
solicitar este emprego¿ O senhor bem sabe que o ordenado é ínfimo.
-
Não é pelo ordenado, é assim ... sempre é um emprego público...
-
Moço... quer me parecer que daqui a um mês o senhor vai enjoar deste emprego e
vai largá-lo – e no entanto existem candidatos para os quais este lugar é uma carreira
para vida inteira... Há homens pobres, para os quais...
- Eu não vou enjoar, Excelência! Interrompeu Polzúkhin.
- Palavra
de honra, eu vou me esforçar.
O
diretor explodiu:
-Ouça
aqui – disse ele, com um sorriso de desprezo – por que foi que o senhor não se
dirigiu logo diretamente a mim, mas julgou necessário incomodar previamente as
senhoras?
- Eu
não sabia que o senhor acharia isto desagradável – respondeu Polzúkhin,encabulado.
– Mas, se Vossa Excelência não dá valor às cartas de recomendação, eu posso
apresentar-lhe atestados...
E
ele extraiu do bolso um papel e estendeu ao diretor. Debaixo do atestado,
escrito em letra e estilo de repartição, figurava a assinatura do governador. Era
óbvio e claro que o governador assinara sem ler, só para se ver livre de alguma
senhora insistente.
-
Que remédio, submeto-me ... obedeço... – disse o diretor, tendo lido o
atestado, e suspirou. – Entregue o requerimento amanhã... que remédio...
E
quando Polkúkhin saiu, o diretor entregou-se todo aos seus sentimentos de
repulsa.
-
Porcalhão! – sibilava ele, andando de um lado para outro pela sala. – Conseguiu
o que queria, mesureiro imprestável, bajulador de mulheres! Imundície! Verme!
O
diretor cuspiu ruidosamente em direção à porta, pela qual acabava de sumir
Polkúkhin, e de repente encabulou, porque naquele momento entrava em seu
escritório uma senhora esposa do Presidente da Câmara Municipal.
-
É só por um minutinho, só um minutinho.. começou a senhora. –Sente-se, compadre,
e ouça-me com atenção... Bem, dizem que o senhor tem uma vaga disponível... Amanhã
ou hoje mesmo virá aqui um moço, de nome Polzúkhin ...
A
senhora tagarelava, e o diretor fitava-a
com os olhos turvos e embaçados, como um homem pronto a desfalecer,
fitava-a e sorria um sorriso mecânico de cortezia.
E
no dia seguinte, recebendo no seu escritório o professor Vremenski, por muito
tempo o diretor não se decidia a dizer-lhe a verdade. Hesitava, atrapalhava-se
e não encontrava um jeito de começar o que dizer. Tinha vontade de desculpar-se
perante o professor, de contar-lhe a verdade pura. Mas a língua se lhe
embaraçava, como se estivesse embriagado, as orelhas ardiam,e, de repente,ele
sentiu que era um aborrecimento e um desaforo ter de fazer este papel absurdo –
no seu próprio escritório, diante do seu próprio subordinado. E, num assomo, ele
deu um murro na mesa, pôs-se de pé de um salto e gritou, furioso:
-
Não tenho emprego para o senhor! Não tenho e não tenho! Deixe-me sossegado! Não
me aborreça mais! Deixe-me em paz de uma
vez, faça-me o favor!
E
saiu do escritório.
Fonte: Contos da Velha Rússia, Ed de 1966
Imagem: fotografia da ilustração de Poty, para o livro Contos da Velha Russia -Tschecov, 1966
Fonte: Contos da Velha Rússia, Ed de 1966
Imagem: fotografia da ilustração de Poty, para o livro Contos da Velha Russia -Tschecov, 1966
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Tschecov
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
Anatomia de uma Y.
Foi a partir de hotél onde eu não posso entrar legalmente que coloquei meus primeiros textos na rede. Minha pele branquela - herdada de dois avós espanhóis - me permitiu burlar os seguranças, que pensavam que eu era estrangeira. Se por acaso me perguntavam aonde eu ia, eu respondia com um germânico " Entschuldigung, ich spreche keinen Spanish" (desculpe, eu não falo espanhol). Levava o pen drive com os últimos posts e o relógio me alertava que dali a quinze minutos não poderia mais pagar o alto preço da conexão à internet. Seria uma facada no bolso caso eu demorasse demais entre um clique e outro.
Tantos atropelos para infiltrar-me nos segregados enclaves turísticos, e alguns meses depis o governo de Raúl Castro anunciaria que terminava o Aparthaid. Teríamos permissão para comprar computadores e hospedar-nos em hotéis, mas não ficou claro com que salário pagaríamos os preços excessivos desses serviços em moeda conversível. Apesar dessa flexibilização, nós cubanos continuamos a ser internautas sem documentos, já que nossas incursões no terreno da internet estão marcadas pela ilegalidade. As transgressões acontecem quando alguém compra uma senha no mercado negro para acessar a rede, ou usa uma conexão oficial para entrar em páginas bloqueadas. Se em vez disso pagamos o preço exorbitante da conexão num hotel, automaticamente delatamos a fonte ilegal de nossos recursos materiais. Eu pertenço a esse último grupelho de criminosos, pois há 10 anos me dedico a ganhar a vida como professora de espanhol e guia turística, sem ter licença para isso.
Quando ainda não era permitida a venda de computadores, eu já havia tido que afirmar diante de dezenas de jornalistas que possuía laptop.Todos sabiam que eu não poderia tê-lo adquirido legalmente nas lojas de meu país e esse era um risco que pressagiava confiscos. Não obstante, minhas declarações exibicionistas pareciam proteger-me em vez de comprometer-me. Compreendi então que o fenômeno blogger era novo também para os censores; não sabiam ainda como lidar com ele. Cada tentativa de silenciar meus escritos, geraria mais e mais hits no servidor onde estava hospedado meu blog. Os tempos tinham mudado e os métodos de coação não tinham conseguido se adaptar à velocidade que a tecnologia tinha imposto.
Por outro lado, o mecanismo de uma antiga máquina de lavar soviética sustenta cada post que consigo publicar. O processo de disponibilizarr textos no mundo virtual é esquisito demais para ser compreendido por qualquer um que não vida em Cuba. Nada de imediatez ou de prenteder ser informativa: meu acesso à rede só me permite apelar à reflexão ou à crônica que não envelhecem rapidamente. O estilo de meus textos e seu enfoque estão condicionados pela indigência informática que os cerca e pela evasiva internet, tão escassa aqui como a tolerância. Para aumentar as dificulddes , em março de 2008 o governo cubano instalou um filtro tecnológico para impedir meu blog de chegar ao interior de Cuba. Por sorte, a própria comunidade de leitores que havia sido criada impediu que se colocasse uma placa de "fechado" na minha página web. Mãos virtuais e amigas me ajudaram a manter meu espaço, apesar de eu ter me convertido numa blogueira às cegas.
Um texto de Andrew Sullivan intitulado " Por que blogo?" caiu em minhas mãos quando Generación Y estava há meses na rede e já haviam me outorgado o prêmio Ortega y Gasset de jornalismo. Ao lê-lo acabei entendendo que meu espaço não cabia no conceito de um blog. Para mim era impossível atualizar todo dia, ou narrar a imediatez do que acontecia na outra esquina. Tampouco podia tomar parte nos comentários que cada texto gerava ou responder as perguntas que os leitores faziam. Entretanto, as carências tecnológicas foram compensadas pelo surgimento de outros inventores de criaturas peculiares como a minha. Já não estava tão sozinha na blogosfera da Ilha, pois surgiram sites como Octavo Cerco, de Cláudio Cadelo, Desde Aquí, mantido por Reinaldo Escobar, Habanemia, da jovem Lía Villares, e Sin Evasión que Miriam Celaya administra com agudeza. Foi rara a semana em que não tomei conhecimento da aparição de um novo espaço virtual e pessoal, feito em cuba e marcado pelas mesmas dificuldades tecnológicas que eu tinha. A proximidade de temáticas e a necessidade de transmitir experiências uns aos outros fizeram com que nos encontrássemos frequentemente, naquilo que batizamos de "jornada blogueira".
Criamos cópias de nossos blogs para leitores que nunca poderiam conectar-se à grande teia de aranha mindial.Em shows, exposições e praças públicas distribuíamos nossos textos sabendo que essa pequena difusão tem como contrapartida um desejo oficial de nos silenciar. Cada cópia entregue é como a inoculação de um virus de consequências imprevisíveis: o bacilo da opinião livre, a infecção que contraem uns ao ver outros se expressando sem máscaras. Uma sociedade cheia de diques e controles é especialmente suscetível a essa gripe blogueira, sobretudo se a vacina contra ela se baseia nos desgastados métodos de outrora: a difamação, as acusações de que somos fabricados pela CIA e a tentqtia de fazer parecer que não somos parte do "povo".
Transcrito na íntegra do livro
De Cuba Com Carinho,- Yoani Sánchez, 2009
Tradução de:Benivaldo Araujo e Carlos D.Petrolini Jr
Ed.Contexto, págs.26 a 29
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Ela, Machado de Assis
![]() |
Nana, Edouard Manet, Museu D'orsey |
Que prendem tão doce encanto,
Que prendem um casto amor
Onde com rara beleza,
Se esmerou a natureza
Com meiguice e com primor
Suas faces purpurinas
De rubras cores divinas
De mago brilho e condão;
Meigas faces que harmonia
Inspira em doce poesia
Ao meu terno coração!
Sua boca meiga e breve,
Onde um sorriso de leve
Com doçura se desliza,
Ornando purpúrea cor,
Celestes lábios de amor
Que com neve se harmoniza.
Com sua boca mimosa
Solta voz harmoniosa
Que inspira ardente paixão,
Dos lábios de Querubim
Eu quisera ouvir um -sim-
P’ra alívio do coração!
Vem, ó anjo de candura,
Fazer a dita, a ventura
De minh’alma, sem vigor;
Donzela, vem dar-lhe alento,
“Dá-lhe um suspiro de amor!”
Em: A alma e Outros Poemas, Machado de Assis - Ed. Globo
Nota: este poema foi escrito em 1855, quando o autor tinha apenas 16 anos
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sábado, 16 de fevereiro de 2013
Sim. Eu vejo novela - Regina Porto
![]() |
Imagem do Google |
Enquanto aguardo saber se meu ato resulta em um (novela) ou dois (novela da Globo) crimes, falo um pouco de Lado a Lado.
É bom ver que,
mesmo seguindo alguns clichês, a novela distanciou-se do negro/branco
idealizado das novelas anteriores com a mesma temática.
Os autores foram realistas dando inveja desmedida, oportunismo, falsidade e irresponsabilidade a Berenice e seu companheiro Caniço. Personagens muitíssimo bem interpretados por Sheron Menezzes( linda!) e Marcello Melo Jr. O casal negro citado é tão ruinzinho quanto o que mora no palacete, tem mais poder e é interpretado por Patrícia Pilar (a baronesa) e Wemer Schünemann (o senador).
O sofrimento do Sr.Afonso (Milton Gonçalves), dividido entre o amor e admiração pela filha e o medo de enfrentar as críticas e gracinhas lançadas sobre Isabel (Camila Pitanga) por causa de sua profissão de dançarina, tão natural, tão humano fez o pai rejeitar a filha.
Sofrimento e rejeição independem de cor: o negro Afonso e a branca baronesa, de formas diferentes, fizeram o mesmo. Ele se reconciliou com a Isabel, mas espanta-se vendo uma branca trabalhando numa casa de negros. A baronesa, não mudou de ideia com relação à filha, rejeitada porque se divorciando envergonha a família, mas afeiçoou-se ao neto que é negro.
No Morro da Providência há pobreza, mentira, roubo, falsidade, negros ruins. Há também D.Jurema e Isidoro ( negra e branco) poços de bondade e honradez.
Os autores foram realistas dando inveja desmedida, oportunismo, falsidade e irresponsabilidade a Berenice e seu companheiro Caniço. Personagens muitíssimo bem interpretados por Sheron Menezzes( linda!) e Marcello Melo Jr. O casal negro citado é tão ruinzinho quanto o que mora no palacete, tem mais poder e é interpretado por Patrícia Pilar (a baronesa) e Wemer Schünemann (o senador).
O sofrimento do Sr.Afonso (Milton Gonçalves), dividido entre o amor e admiração pela filha e o medo de enfrentar as críticas e gracinhas lançadas sobre Isabel (Camila Pitanga) por causa de sua profissão de dançarina, tão natural, tão humano fez o pai rejeitar a filha.
Sofrimento e rejeição independem de cor: o negro Afonso e a branca baronesa, de formas diferentes, fizeram o mesmo. Ele se reconciliou com a Isabel, mas espanta-se vendo uma branca trabalhando numa casa de negros. A baronesa, não mudou de ideia com relação à filha, rejeitada porque se divorciando envergonha a família, mas afeiçoou-se ao neto que é negro.
No Morro da Providência há pobreza, mentira, roubo, falsidade, negros ruins. Há também D.Jurema e Isidoro ( negra e branco) poços de bondade e honradez.
Na cidade, há riqueza
e, igualmente, mentira,roubo, falsidade, brancos ruins. Há Edgar e Celinha, brancos ( não há negros
morando fora do morro) dignos.
Ser mau caráter é branco e é negro, é inerente a humano, enfim.
Também é geral, e não estou aqui discutindo certo e errado, o preconceito contra a mulher muito bem colocado na personagem vivida por Marjorie Estiano, posta pra fora do emprego tão logo seus patrões (brancos e religiosos) descobriam seu criminoso estado civil de divorciada.
A negra, Isabel (linda), depois de enriquecer irou brancos e negros e em ambos os lados houve exceção. O negro Zé Maria (Lázaro Ramos, impagável) depois de atos de heroísmo, atrai ira de negros e brancos.
De mim, os autores recebem os parabéns por deixarem os sentimentos bons e maus recaírem sobre as pessoas e não sobre a cor delas e nem por isso insinuarem ou defenderem que o passado brasileiro contra os negros não existiu. E nós sabemos que o racismo continua, como também o preconceito contra as mulheres.
Gostei de ver as páginas da revolta da Chibata e da Vacina (esta eu não conhecia) trazidas ao público de TV; agrada ver o figurino muito bem cuidado, com aplauso especial aos de Laura, D.Margarida, Isabel e da baronesa; Por fim, quero falar que na terça de carnaval, vi a personagem Laura dizer o livro que está lendo: A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida. Por causa da novela, entendi que a autora é do séc. XIX, mas confesso minha total ignorância sobre ela.
Já que tinha ido ao Google procurar o nome dos atores para por entre parênteses, procurei também sobre a autora do livro e me impressionei com o que li: “ embora no seu tempo de moça não fosse de bom-tom nem do agrado dos pais, uma mulher dedicar-se à literatura.” A gente fala disso noutra ocasião. Se alguém tem o livro A Intrusa ou algum outro de Júlia Lopes de Almeida, peço emprestado prometendo devolução.
Ser mau caráter é branco e é negro, é inerente a humano, enfim.
Também é geral, e não estou aqui discutindo certo e errado, o preconceito contra a mulher muito bem colocado na personagem vivida por Marjorie Estiano, posta pra fora do emprego tão logo seus patrões (brancos e religiosos) descobriam seu criminoso estado civil de divorciada.
A negra, Isabel (linda), depois de enriquecer irou brancos e negros e em ambos os lados houve exceção. O negro Zé Maria (Lázaro Ramos, impagável) depois de atos de heroísmo, atrai ira de negros e brancos.
De mim, os autores recebem os parabéns por deixarem os sentimentos bons e maus recaírem sobre as pessoas e não sobre a cor delas e nem por isso insinuarem ou defenderem que o passado brasileiro contra os negros não existiu. E nós sabemos que o racismo continua, como também o preconceito contra as mulheres.
Gostei de ver as páginas da revolta da Chibata e da Vacina (esta eu não conhecia) trazidas ao público de TV; agrada ver o figurino muito bem cuidado, com aplauso especial aos de Laura, D.Margarida, Isabel e da baronesa; Por fim, quero falar que na terça de carnaval, vi a personagem Laura dizer o livro que está lendo: A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida. Por causa da novela, entendi que a autora é do séc. XIX, mas confesso minha total ignorância sobre ela.
Já que tinha ido ao Google procurar o nome dos atores para por entre parênteses, procurei também sobre a autora do livro e me impressionei com o que li: “ embora no seu tempo de moça não fosse de bom-tom nem do agrado dos pais, uma mulher dedicar-se à literatura.” A gente fala disso noutra ocasião. Se alguém tem o livro A Intrusa ou algum outro de Júlia Lopes de Almeida, peço emprestado prometendo devolução.
Hoje não tenho
aula. Vai dar pra ver a novela. Será que é de bom tom ver novela na Globo??
Lado a Lado: de Claúdia Lage e João Ximenes exibida no horário das 19h.
Lado a Lado: de Claúdia Lage e João Ximenes exibida no horário das 19h.
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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
Recomendo:Sargento Getúlio.
Somente agora estou lendo o primeiro sucesso de João Ubaldo Ribeiro: Sargento Getúlio, foi lançado em 1971 e lhe rendeu o prêmio Jabuti do ano seguinte como autor revelação. Pode-se dizer que todo o livro é um monólogo do Sargento, que antes de aposentar-se recebe a incumbência de levar um preso, desafeto político de um mandão de Paulo Afonso (BA) até Aracaju (SE).
O personagem vai falando do que pensa a respeito do preso, da situação da estrada por onde passa, do calor, da chuva ou estiagem, dos lugares e pessoas que encontra no trajeto. Vai resmungando e se alimentando de ira, vai contando as brigas e as violências que cometeu, mistura um assunto com outro, delira, questiona lei e costumes...
Sargento Getúlio é daqueles homens que faz questão de cumprir uma ordem ou uma promessa a qualquer custo. Foi obrigado a levar o prisioneiro até Aracaju e mesmo tendo recebido informação de que já não é mais pra seguir a viagem, vai em frente encontrando pra si todas as razões para fazê-lo. Para ele é como se tivesse de cumprir um destino.
João Ubaldo fez um romance regionalista, usando uma linguagem bem especial. O Sargento comete os erros comuns às pessoas daquele lugar e época e o autor ainda põe no livro a linguagem falada. Há palavras que, suponho, foram inventadas pelo autor. Estou achando o livro bastante interessante, faltam poucas páginas para terminar.
João Ubaldo, Hermanno Penna e Flávio Porto escreveram o filme baseado no livro. Nas telas é Lima Duarte quem faz o papel do Sargento Getúlio. Não assisti.
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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
Quarta-feira é dia de: Marques Rebelo
Maria Rosa ficava no fim da serpentina, cabelos deslumbrantes de alvoroço e dourado, bailarina azul,solitária sobre a capota descida do trepidante automóvel.
O corso rodava,vagaroso, com tripla fila, com amplas e seguidas paradas, entre alas de ditos e fantasias - havia corso, então, foi há tanto tempo que os automóveis ainda eram fechados para os donos não sofrerem frio ou poeira e esconderem melhor seus mistérios de amor.
Em parábolas, as serpentinas cortavam o ar da Avenida, desaguadouro dos foliões de todos os bairros, compacto manto feliz de narizes falsos, máscaras grotescas, vozes de falsete, cantos, rodopios, reco-recos.
A serpentina não findara. Maria Rosa recolheu no regaço de filó o rolo quase intacto; num gesto difícil, desajeitado, devolveu a fita amarela com o beijo na ponta que veio estalar no coração juvenil, e que, ainda hoje ecoa com a mesma cor e fragrância na entrada de um outro carnaval sem corso e sem serpentinas.
Ai seu Mé!
Ai seu Mé!
Lá no Palácio das Águias
Olé!
Nunca hás de por o pé.
Das sacadas pejadas de gente tombava confete, gotas multicores de papel, que escondiam o chão; o céu ameaçador para os lados do mar estremecia de relâmpagos; o calor como onda misturada de éter perfumado não diminuía o furor da alegria; e o chii dos lança-perfumes e os gritinhos nervosos das moças atingidas pelo friozinho folião e gentil
A serpentina parecia inextinguível. No meio de mil outras, minha e amarela, ligava dois desejos fugazes por suas pontas frágeis. Novamente cortou o espaço a caminho do regaço azul. Parou ao meio, finda afinal, ficou vibrando no ar como desesperada bandeira compridíssima. ah! abriu a boca pintadíssima - outra! outra!
Voou ao maravilhoso apelo a serpentina azul, que se confundiu no saiote da bailarina por três diass e as pernas alvas cerraram-se para contê-la.
Vem serpentina azul, vai serpentina vermelha, os estandartes improvisados requebram no meio do poveréu, os trombones usam toda a voz, os pandeiros, os chocalhos, os instrumentos improvisados com latas, caixas de charuto atordoam, todas as bocas, milhares de bocas sabem de repente a mesma canção, um único rítmo como que sacode a Avenida de ponta a ponta, e Maria Rosa canta tmbém e sacode-se, bamboleia, bate palmas, mexe com os desconhecidos e segura-se medrosa aos ferros da capota, quando o carro dá arranco para parar dois metros adiante.
Ai seu Mé!
Ai seu Mé!
Lá no Palácio das Águias
Olé!
Nunca hás de por o pé.
Maria Rosa tem pouca direção nos seus golpes - a serpentina verde passa longe do meu alcance, a violeta bate no pára-brisas, a branca atreve-se a deslizar pelo grande bigode do chofer ao meu lado - quantas se perdem pelo chão, escondendo-se no tapete de confetes, esmagadass pelos pés dos mascarados e pelas rodas dos carros!
Mas mesmo assim os nossos carros vão se unindo na trama rápida e enamoraa das fitas de papel - sou rico de serpentinas, de entusiasmo, de desejo. Os pierrôs que a acompanham - três de preto, imensas golas escarlates de tartalana e guizos - vivem o seu momento carnavalesco em pé no automóvel. Do meu lado os companheiros têm olhos para outros acontecimentos. E estamos como que sós no meio da desirdenada batalha e os carros chegaram a ficar tão juntos que nos falamos.
Debrucei-me no pára-brisa:
- Como é o seu nome?
Passa o caminhão de crianças e girassóis, como um imenso caramachão, num alarido:
Passa o caminhão de crianças e girassóis, como um imenso caramachão, num alarido:
O povo só quer a goiabada
campista.
Rolinha desista,
Abaixe a crista...
Insisti:
- Como é o seu nome?
Apurou o ouvido:
- Quê?
- Como é o seu nome? e o chofer me olhava de soslaio.
Trazia a boca pintada em forma de coração:
- Meu nome? Para que saber?
Atrevidíssimo, delirante:
- Porque goste de você.
Tão brejeira:
-Oh!
Os carros arrancam em estampidos e fumaça, o liame de serpentinas resiste ao retesamento, os relâmpagos amiúdam-se, se escurece não é só a tarde, é a tempestade de verão que vem e é preciso aproveitar todos os minutos.
-Não quer dizer?
Fazia trejeitos: que não.
- Por quê?
Jogou mais serpentinas, soprou uma corneta de papelão, cochichou com os três pierrôs. De braços com um dominó, a caveira passa com a curva foice arrepiando os medrosos - sai azar! O urso sacode o corpanzil de saco de aniagem - se acendessem um fósforo era uma vez um folião! Uma velha canção brota de todas as almas:
Ô pé de anjo!
Ô pé de anjo!
És rezador, és rezador,
Tens um pé tão grande,
Que és capaz de pisar Nosso Senhor!
Aí eu implorava:
- Não quer dizer?
Era linda! Os dentes miúdos como bagos de milho branco, manchas de sol ao longo dos braços trigueiros, o corpete tão justo que fazia uma marca no peito, o suor escorrendo pelas faces de carmim. A faísca serrou o céu. As primeiras gotas, enormes, estalaram, oh! rugiu a Avenida inteira - chuva!
- Maria Rosa! - gritou ela no meio do oh! imenso e retumbante trovão.
A chuva caiu como um sólido,fulminante, diluvial, batia no chão e levantava- se branca como vapor. Num átimo as sarjetas se encheram, os ralos entupidos de confetes e serpentinas afogados. Em debandada o povo fugia para apinhados e precários abrigos.
O automóvel dela, destro, enfiou pela primeira rua. Ia encharcada já, acenando com o braço de sol. O nosso, por estupidez do chofer, continuou ainda, para fugir afinal por outra rua adiante.
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