Pular para o conteúdo principal

O Rosto da Maçã, Fernando Farias


     No princípio, eu criei os céus e a Terra. A terra era sem forma e vazia. Havias trevas sob a face do abismo.Então eu disse: faça-se a luz .E a luz se fez.
     Então comecei meu trabalho.Elétron por elétron, átomo por átomo, fazendo vibrar a matéria e dando formas e nomes às coisas.
     Levei sete trilhões de anos para fazer o universo. Mas vocês dizem que foram apenas sete dias. Não foi fácil. Desenhar, redesenhar, rasgar, jogar fora, começar de novo, aprovar, recusar. Os animais deram muito trabalho, milhões de espécies. Programar as patinhas das centopeias para não tropeçarem, fazer a bundinha do vagalume acender e apagar ou fazer a lagosta ver doze cores.
     E foi assim que fui aprendendo, sozinho, a arte de criar seres vivos. Estava pronto para realizar minha obra mais perfeita. Quando terminei de fazer todos os animais da Terra criei a mulher. À minha imagem e semelhança.Tão feminina quanto eu.Ví que minha obra era boa e descansei.
     Hoje no oitavo dia, acordei e vim conferir tudo o que foi criado. Mesmo precisando de alguns ajustes como consertar degelos, agora eu percebo que um vírus se instalou em minha obra e que terei de reiniciar tudo que fiz.
     É que surgiram seres estranhos à minha criação. Homens individualistas, mesquinhos e falseadores. São os mentirosos que pensam  que são criadores de universo, que querem me imitar e transformar nuvens em rochas. Não. Não estou falando de advogados.
     A desgraça que destruiu toda minha obra são os escritores.Os poetas.Que admitem fingir dor que sentem.Criam universos paralelos nas mentes, obras de ficção  que enganam e iludem as pessoas.
     Usam os livros para divulgar a violência e coisas românticas. E o mundo acredita neles. Histórias ridículas de amores eternos, de casais que se suicidam por amor ouvindo cotovias; um homem que acorda e descobre que é uma barata e sofre indiferença da família; outra escreve um livro de 200 páginas para descrever que comeu a barata; ditaduras do grande irmão; mulheres infiéis francesas; odisséias pelos mares monstruosos; os lobinhos que comem a vovozinha; máquinas que dominam o homem; loucos que enfrentam moinhos; pactos com demônios.
     Não são escritores. São excretores. Dizem-se realistas e na verdade pregam o fantástico.Certa vez, usando meu santo nome, quatro escritores escreveram fantasias sobre um homem que nasceu de uma virgem, andou sob as águas,curou e ressuscitou mortos,morreu e foi aos céus. Realismo fantástico. E assim fizeram as religiões,também usando meu nome. Vocês sabem que eu não tenho religião.
    Por todos estes crimes dos escritores e seus seguidores é que resolvi destruir tudo e recomeçar o mundo.
     Decidi convidar você para repovoar o mundo. Preciso de uma nova Eva e uma nova Lilith. Mas,por favor, tenham cuidado quando comerem a maçã da árvore do conhecimento.
     Não jogue o resto de fruta no chão como fizeram da outra vez. O macaco Adão que comeu o resto da maçã, que evoluiu e que vocês chamam de homem, pode comer e criar novamente esta raça maldita que vocês chamam de escritores.
     Amanhã as águas dos mares vão subir novamente até esfriar o Sol e as estrelas. nada mais aqui existirá. Vou fazer meu primeiro dilúvio na terra. Um grande dilúvio.
     Observo que você estranha o que eu digo. Já existiu um dilúvio antes? Há um livro chamados Gênesis que já fala da destruição do mundo pelas águas? Então algum escritor, malditos escritores, escreveu um livro que fala que eu criei o mundo em sete dias. Neste caso será que sou apenas um personagem criado por algum escritor judeu há seis mil anos? Então eu sou a imagem criada por um escritor?
     Eu não existo. Eu não acredito em mim.

Nota: o blog manteve a grafia original.


Comentários

  1. No final tudo é uma invenção, nem mesmo Deus pode escapar, sua cara de espanto quando se reconhece criatura do homem me fez rir. Javé, de todas as personagens da literatura, é uma das mais mal humoradas que conheço. Rir de um chato não pode ser considerado pecado.

    ResponderExcluir
  2. Bem maluquinho esse conto, não? gostei pra caramba. Rir de chato é, antes, uma terapia.
    abraço

    ResponderExcluir

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.