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Magdalena, Paulo Bomfim



    Tia Magdalena é das melhores lembranças que trago da infância.
      Foi companheira e confidente das travessuras do menino solitário rodeado de gente muito mais velha e dos altos muros que cercavam a casa dos avós na Vila Buarque.
      Colecionamos juntos marcas de cigarros que recebíamos das visitas, e, depois, no porão da casa, acabávamos sempre fumando toda a coleção.
      Essencialmente musical, escrevia bem e tinha o dom da sátira. Imitava com muita graça os outros; e os poemas onde retrata as fraquezas e o ridículo de pessoas e situações são peças dignas de serem assinadas por um Moacyr Piza ou por Juó Bananere.
      Ao lado desse aspecto curioso da personalidade, foi durante alguns anos a melhor aluna de piano de Marieta Lion.
      A peça “Noite de São Paulo” de Alfredo Mesquita, encenada no Municipal em 1936, é o divisor de águas de sua vida artística. Desaparecia nesse momento a pianista para surgir em seu lugar a grande cantora.
      Começou estudando com Mademoiselle Bourron, passando a seguir a discípula querida de Vera Janacópolus, irmã de Adriana Janacópolus a escultora que fez aquela cabeça de soldado constitucionalista existente no pátio da Faculdade, no Largo de São Francisco.
      Iniciava-se a carreira da artista que seria a intérprete preferida de Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Mário de Andrade.
      Este último, voltava a conviver com nossa família depois do protesto de meus tios Guilherme e Carlos, do primo Carlos Pinto Alves, de Getúlio Paula Santos e colegas da Faculdade de Direito, no Municipal em 22, durante a Semana de Arte Moderna.
      Paralelamente à música, repetia-se com tia Magdalena, o mesmo drama de desencontros ocorrido com sua tia Alice, meio século antes.
      Ambas se apaixonaram por diplomatas que partiram sem as amadas que não tiveram coragem de deixar os pais enfermos.
      Tia Alice e o embaixador Carlos Magalhães de Azeredo, e tia Magdalena e o embaixador Pytiguar Fleury de Amorim, irmão de sua cunhada Yacyra, casada com o poeta Carlos Magalhães Lebeis.
      Quando Pytiguar ingressou na carreira diplomática, meu avô Sebastião passava muito mal. O casamento com o jovem diplomata foi sendo protelado, protelado, e acabou não saindo nunca.
      Na Argentina, em Portugal, em Liverpool e, posteriormente, em Londres, Pytiguar esperou inutilmente por Magdalena.
      Passou a guerra numa Inglaterra bombardeada, sonhando com alguém que não chegava. Um dia, em dezembro de 48, o coração do embaixador não resistindo a tanta ansiedade, pára de bater em Londres. Seu corpo embalsamado recebe no Rio de Janeiro as honras do Governo e do Itamaraty.
      Tempos depois, o menino Fernando aguardava na sacada de seu apartamento na Rua Cândido Gaffrée, na Urca, o momento em que o navio trazendo da Inglaterra, móveis, livros, quadros e prataria do tio, entraria na Guanabara.
      De longe o vapor vinha se aproximando e meu primo em seu posto de observação informava a família os detalhes da chegada daquela embarcação da Mala Real Inglesa.
      Subitamente grita:
      – Venham ver, o navio está passando aqui em frente e seu nome é Magdalena!
      O Magdalena atracou. Grandes caixotes com seu nome impresso na madeira foram descarregando no porto as lembranças do embaixador.
      Quando o Magdalena, prosseguindo viagem, atravessa novamente a Baía de Guanabara para rumar para Buenos Aires, ocorre então a coisa mais fantástica. Sem mais nem menos, parte-se ao meio e desaparece em poucos minutos!
       O mar unira Magdalena a Pytiguar.

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