Pular para o conteúdo principal

Porque hoje é.... aniversário de Drummond


Hoje Carlos Drummond de Andrade faria 111 anos. Não vou falar nada sobre o poeta, claro. Ele desde há muito é de po todos querido e sabido. Procurei, então, a página 111 de um de seus livros e encontrei um poema que podia ser crônica, artigo, prosa... Drummond, exagerado em talento, tinha dessas coisas. Deixo abaixo o que encontrei na página 111 e, iurrúuuuu , ainda não tinha no Google!


Desenho de Ramon Muniz



Em Março, Esta Semana
Carlos Drummond de Andrade

Segunda-feira a gente ficou presa
não no distrito: em casa, ante o combate
de Cassius Clay e Frazier... Que tristeza
ver Muhammad Ali tatibitati,

hesitando, caindo, prolongando
por 15 rounds nossa aflição inglória:
Vai resistir? Virar a luta? Quando
acaba a cruenta e lenta história?

Sem apostar um dólar ou cruzeiro
pois nutro por tabefes sacro enjoo),
lamento haver perdido: o palradeiro
tem minha simpatia no seu voo

rumo  à ideia de paz,num mundo de guerra.
Até  um boxeador acusa o vício
de nos entretermos sobre a terra,
este açougue instalado num hospício.

Lá se foi Harold Lloyd, um velho chapa
do tempo em que o cinema era calado
e a gente é que falava... Eis que à socapa
voltam risos e sombras do passado.

- Viu Carlito no Circo? - Não quis ver,
pois já não sou broto carlitiano,
e procurando nele o antigo ser,
não mais o encontro ... Deve haver engano.

Mudaria Carlito ou mudei eu?
(Sempre me perseguindo o eterno Assis,
como se a vida não me houvesse assaz
revelado o segredo de uma noz
escondida num papo de avestruz.)

A rima neste ponto se perdeu,
mas que importa? Se a Light  não me apaga
a luz, visitarei com Geyse Bôscoli
(oh abram alas!) Chiquuinha Gonzaga
no livro que através o tempo fosco lhe
recorda o humano e musical perfil.
Que mulher e que mina de talento
Em polca, xote, valsa, tango, mil
Composições, arte lançada ao vento!

Mas que é isso, no Parque de Iguaçu?
Que diz o Frisch? Por manhas de posseiros
vejo as fontes secando e o solo nu?
Roubam nossos tesouros derradeiros?

Orlando Vilas-boas, por seu lado,
no Parque do Xingu, pede magoado:
- Mudem-me, por favor, esse traçado
de rodovia, que desmantelado

deixa o viver de índio na floresta
e nada lhe oferece além da triste
integração, essa ilusória festa
a que ele, sem defesa, não resiste.

Falar em índio, grande livro este,
novinho, de Darcy Ribeiro. Leste?
Uma serena avaliação de dados
a serem fundamente  meditados

enquanto não se extingue a velha raça
de teto errante e de ventura escassa.
Já não mais tranço as rimas, e daí?
Parelhas são, mas contam que li,

o que vi ( ou não vi) prestando ouvido
na direção do terceiro partido.
Quem é que vai fundar, que pioneiro,
um que falta; o primeiro e verdadeiro?

Havia de ser bom. Mas como? Onde?
o eco anda maroto, não responde.
E vem-me a tentação, mais uma vez,
de romper estruturas... Um, dois, três:

 “Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada...”
- Mas isso é Bilac ! – Então, adeus ... mais nada.


 Sugiro a audição do poema Morte No Avião, que o(a) internauta do Diário Caçadorense informa ser a página 111 do livro A Rosa do Povo. 

 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.