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A Verdadeira Renda, Carlos Drummond de Andrade

                           Senhor Diretor do  Imposto de Renda,

     O Senhor me perdoe se venho molestá-lo. Não é consulta: é caso de consciência. Considerando o formulário para declaração de imposto de renda algo assimilável aos textos em caracteres cuneiformes, sempre me abstive  religiosamente de preenche-lo.  Apenas dato e assino, entregando-o, imaculado como uma virgem, a um funcionário benévolo, a quem solicito: "bote aí o que quiser." Ele me encara, vê que não sou nenhum tubarão, rabisca uns números razoáveis , faz umas contas e conclui: "É tanto." Pago e vivemos in love, o Fisco e eu. Mas este ano ocorreu-me uma dúvida, a primeira até hoje, em matéria de renda e de imposto devido. O bom funcionário não soube resolvê-la, ninguém na repartição o soube.
   
 Minha dúvida, meu problema,Sr.Diretor, consiste na desconfiança de que sou , tenho sido a vida inteira um sonegador. Involuntário, inconsciente, mas de qualquer forma um sonegador. Posso alegar em minha defesa muita coisa: a legislação, embora profusa  e até florestal, é omissa  ou não explícita; os ítens das diferentes  cédulas não prevêem o caso; o órgão fiscalizador jamais cogitou disso; todo mundo está nas mesmas condições que eu, e ninguém se acusa ou reclama contra si mesmo. Contudo, não me conformo, e venho expor-lhe lealmente as minhas rendas ocultas.

     A lei manda cobrar imposto a quem tenha renda líquida superior a determinada importância; parece claro que só se tributam rendimentos em dinheiro. A seguir, entretanto, a mesma lei declara: "São também contribuintes as pessoas físicas que perceberam rendimentos de bens de que tenham posse, como se lhes pertencessem."  E aqui me vejo enquadrado e faltoso.  Tenho a posse de inúmeros bens  que não me pertencem e que desfruto copiosamente. Eles me rendem o máximo, e nunca fiz constar de minha declaração tais rendimentos.

    Esses bens são: o sol, para começar do alto (só a temporada de praia, neste verão que acabou, foi uma renda fabulosa); a lua que, vista do terraço ou da calçada da Avenida Atlântica, diante do mar, me rendeu milhões de cruzeiros-sonhos; as árvores do Passeio Público e do Campo de Santana, que alguém se esqueceu de cortar; a montanha, as crianças brincando no play ground ou a caminho da escola; em particular, três meninos que vêm e que vão pelo ar¹, tão moleques e tão rendosos para este coração, as mangas, os chocolates comidos contra prescrição médica, um ou outro uísque sorvido com amigos, na calma calmíssima; os versos de três poetas, um francês, um português e um brasileiro², certos prazeres como andar por andar, ver figuras em edições de arte, conversar sem sentido e sem cálculo; um filmezinho como Le Petit Poisson Rouge em que o gato salva o peixe para ser gentil com o canário, indicando um caminho aos senhores da guerra fria; e isso e aquilo e tudo o mais de alta rentabilidade... não em espécie.
     Estes os meus verdadeiros rendimentos, senhor;salários e dividendos não computados na declaração. Agora estou confortado porque confessei; invente depressa uma rubrica para incluir esses lucros e taxe-me sem piedade. Multe, se for o caso; pagarei feliz. Atenciosas saudações.


1 - refere-se aos netos que moravam em Buenos Aires.
2 - os poetas são: Verlaine,Camões e M.Bandeira
3-Le Petit Poisson Rouge - um curta metragem: o pequeno peixe vermelho.

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