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A Viagem, Maurício Pons


                             Partiu às dezenove horas e meia o ônibus que deveria ter saído sessenta minutos antes, o que geralmente acontece com esses pinga-pinga de sexta-feira. Quando tomei meu lugar na poltrona 27 o veículo já estava bastante ocupado. O ar em seu interior sustentava partículas diversas: perfume barato,salgadinho de queijo e pés suados. O compartimento de água mineral estava vazio,e meu desejo de que o reabastecessem  novamente não foi satisfeito. Por sorte logo iríamos fazer uma parada de meia hora para troca de motorista e jantar. Não que eu estivesse com fome - não estava, mas vou precisar da água.


     Gosto de viagens longas em ônibus. É quando consigo pensar. Pensar em quê? Em respostas!

Não em respostas que eu procuro, mas nas que procuram em mim. Não nas certas, mas nas erradas, nas que falei sem ao menos pensar por cinco segundos. Essa é a ironia. Falo sem pensar, e depois não penso em outra coisa, nas possibilidades, oportunidades perdidas, no que poderia ter sido e no que foi realmente.

     Não concentro no livro, não escuto a música,não sinto mais os cheiros; só ouço a minha voz que desconheço dizendo palavras que eu não queria ter dito. O profeta estava certo:palavras são como flechas que depois de lançadas não mais retornam.


     Após trinta e cinco minutos de viagem o ônibus parou em um restaurante de beira de estrada. Precisei acordar o senhor que dormia na poltrona ao lado para que eu pudesse descer. Na calçada, alguns passageiros inundam seus pulmões com nicotina. Dentro do restaurante as filas se formam no bufê de salgados e doces. Pago minha água e volto para o meu lugar dentro do coletivo. Chequei o celular. Nenhuma ligação ou mensagem de texto. Toquei no pequeno ícone na lista de contatos do aplicativo e o sorriso se ampliou na tela brilhante. 


     Depois de constatar que não estava online guardei o telefone no bolso da calça e coloquei os fones para ouvir The Police. Pensei em ligar. Devia?! E dizer o quê? Que tudo o que eu falei não era o que eu queria ter dito? Que ela entendeu errado porque eu não falei certo? Que ainda não era tarde demais? Ambos sabemos que o tempo passou e que agora não tem tanta importância; não depois de tudo o que eu (não) disse e fiz.


     Os passageiros dormem enquanto o ônibus desliza suave pelo asfalto escuro como a madrugada. Apanho do chão minha única bagagem, uma mochila preta que uso pra carregar livros, o Ipod, fones de ouvido e outras coisas que uso nessas viagens. Abro o bolso de fora e pego três comprimidos. 
     Tomo primeiro o branco, que me fará dormir,com um gole da água mineral sem gás que comprei no paradouro. Acendo a luz de leitura, abro o livro onde está o marcador de páginas e leio: “Há certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer.” Li mais um pouco até que o remédio começou a fazer efeito. Peguei os outros dois comprimidos, amarelos, e com goles mais generosos de água eu os engoli. Repouso o livro no colo, reclino a poltrona, fecho os olhos e fico esperando os remédios fazerem seu trabalho. Tenho uma longa viagem pela frente, e pela primeira vez eu não sei bem para onde estou indo...


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