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Mostrando postagens de abril, 2016

Uma Vela Para Dario,Dalton Trevisan

Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo. Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque. Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca. Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda chuva na parede. Ma não se vê guarda

Adminimistério, Paulo Leminski

Imagem:Regina Porto Quando o mistério chegar, já vai me encontrar dormindo, metade dando pro sábado, outra metade, domingo. Não haja som nem silêncio, quando o mistério aumentar. Silêncio é coisa sem senso, não cesso de observar. Mistério, algo que, penso, mais tempo, menos lugar. Quando o mistério voltar, meu sono esteja tão solto, em haja susto no mundo que possa me sustentar. Meia-noite, livro aberto. Mariposas e mosquitos pousam no texto incerto. Seria o branco da folha, luz que parece objeto? Quem sabe o cheiro do preto, que cai ali como um resto? Ou seria que os insetos descobriram parentesco com as letras do alfabeto? Fonte: Revista Bula

Crônicas da MPB: Bolero de Isabel, Jessier Quirino

Bolero de Isabel, Clique aqui para ouvir a música Interpretação: Xangai É um nó dado por São Pedro Desarrochado por São Cosme e Damião É u'a paixão, é a sensação de um repente Igual ao quente do miolo do vulcão Quer ver o bom, é o aguado quando leva açúcar É ter a cuca açucarada num beijo roubado É o pecado confessado ao Mestre Sereno Levar sereno num terreiro bem enluarado É o pinicado do chuvisco no chão pinicando Ficar bestando c'um inverno bem arrelampado É o recado da cabocla um beijo mandando Tá namorando a cabocla do recado. Quer ver desejo, é o desejo tando desejando E a lua olhando este amor na brecha do telhado É o rodeado do peru peruando a perua É a canarinha galeguinha cantando o canário Zé do Rosário bolerando com Dona Isabel Dona Isabel bolerando com Zé do Rosário Imaginário de paixão voraz e proibida Escapulida, proibida pro imaginário Quer ver cenário é o vermelho da auroridade É a claridade amarelada do amanhecer É ver corre

Manoel de Barros.

Eu estava encostado na manhã como se um pássaro  à toa estivesse encostado na manhã. Me veio uma aparição: Vi a tarde correndo atrás de um  cachorro.   Eu teria 14 anos.Essa aparição deve ter vindo de minhas origens. Porque nem me lembro de ter visto nenhum cachorro a correr de uma tarde. Mas tomei nota desse delírio. Esses delírios irracionais da imaginação fazem mais bela a nossa linguagem. Tomei nota desse delírio em meu caderno de frases. Àquele tempo eu já guardava delírios. Tive outra visão naquele mês. Mas preciso antes contar as circunstâncias. Eu exercia um pedaço da minha infância encostado à parede da cozinha no quintal de casa. Lá eu brincava de cangar sapos. Havia muitos sapos atrás da cozinha. A gente bem se entendia. Eu reparava que os sapos têm o couro das costas bem parecido com o chão. Além de que eram do chão e encardidos. Um dia falei pra mãe: sapo é um pedaço de chão  que pula . A  mãe disse que eu estava meio variado. Que sapo não é um pedaç

Troika, Ruth Manus

A gente sempre pode procurar desculpas. Para não ir, não fazer, não encarar. Sempre haverá uma desculpa. Para não sentir, não escrever, não se dar A gente pode viver de desculpas. E nunca cair, nunca doer, nunca chorar. E de desculpa em desculpa. Nunca sair, nunca correr, nunca embarcar. E de desculpa em desculpa. Sempre impedir, sempre morrer, sempre parar. Mas a vida desculpa. E te deixa seguir, reverter, resgatar. Então agora, sem desculpas. Se abrir, se atrever, se jogar. Sem desculpas, sem medo, sem culpa. Invadir, pertencer, avançar. Imagem: www.mensagemcomamor.com.br Troika  ou  troica :  palavra russa que designa um comitê de três membros. A origem do termo vem da " troika " que em russo significa um carro conduzido por três cavalos alinhados lado a lado, ou mais frequentemente, um trenó puxado por cavalos. Em  política , a palavra  troika  designa uma aliança de três personagens do mesmo n

Visitando a Estante da Casa 2

Ainda visitando a estante... Livro bem velhinho eu tenho sim, mas está mais adiante.  Tem livro manchado e com traços de quem ficou por anos abandonado?  Ah, tem sim. Tem livro que me fez voltar aos anos 70, estudante de biologia?  Claro. Elenco de Cronistas Modernos, comprado em 1975 para as aulas de Português 1 e 2 da Unicap.  Doei pensando que as crônicas leves e bem escritas fariam uma bela adolescente se interessar por leitura.  Não funcionou.   Voltou para mim  décadas depois e vai ser doado brevemente. Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Raquel de Queiroz e Rubem Braga são o elenco.   Biologia, Ciência Única . Ernest Mayer. Minha filha que me deu esse livro.  Não terminei o curso, mas ainda hoje nutro paixão por Biologia. " O biólogo Ernest Mayer nos oferece, aos cem anos, suas reflexões sobre as mais interessantes e importantes questões da vida: por que os se

Banho de Açude, Regina Ruth Rincon Caires

             O aviso fora dado pela enésima vez...       Mas, vivendo a plenitude da meninice, como resistir a um banho de açude naquele calor infernal?!       Nos arredores da vila, nas áreas de vários sítios e fazendas, os açudes multiplicavam-se ano a ano. Escavados, brotados das minas; enfim, eles espocavam convidativos, tentadores.       E assim, para o desespero e a preocupação dos pais, não havia tarde que não terminasse com os meninos varando cercas de arame farpado, cruzando plantações, pastagens, e mergulhando nas águas nem sempre limpas daqueles imensos açudes.       E, apesar dos inúmeros avisos, Mário estava sempre entre eles. Cansava de prometer a si mesmo que não mais desobedeceria às ordens do pai, que não quebraria o acordo firmado com ele, mas era uma tentação quando os ponteiros do relógio da igreja matriz iam marcando três horas da tarde...       Os meninos, sorrateiros, iam-se esgueirando das casas, da praça, e seguindo em direção de a