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Sonho Gelado, Cizenando Cipriano

     A noite já dança sensualmente entre luas, olhares e esbarrões. Porto seguro, a mesa de bar é a casa do boêmio. Entre encontros originais, alegrias desdobradas e tristezas destiladas,nascemorrem madrugadas e sonhos, enquanto sobrevive a ilusão. No copo úmido, a ideia vem lenta como o próximo gole: por que não? É a pergunta fatal.

O vão entre o brilhantismo e a estupidez, dizem, é de 20 andares. Como só esteve em um dos lados da equação, ele não pode confirmar a tese. Reunido com os amigos, deixa-se levar pela possibilidade antes desejada, há pouco palpável e agora real: com a experiência de quem já transitou dos botequins mais vagabundos às franquias assépticas, tinham condições de abrir seu próprio bar.

Nada mais perfeito do que fazer do prazer uma fonte de renda, não? E, ainda, após tantos golpes de água fria nos pés e ofertas de retirada das mais sutis às mais grosseiras, manteriam a porta de ferro levantada pelo tempo que desejassem – a sua política é que imperaria em sua casa, afinal. Brinde feito, e repetido, e repetido, e repetido, plano iniciado. Sobreviveria a algumas horas de sono?

Sobreviveu. E entre tentativas de lembrar as geniais estratégias de marketing e administração, pensavam no local ideal para instalar o pequeno botequim. O grupo divergiu por poucos minutos, até brotar o consenso pela tradição, apesar da concorrência: projetavam que o conhecimento da arte da boêmia e dos anseios dos boêmios tornaria sua casa um ponto de referência.

Mais uma gelada aberta para comemorar e os cenários foram se desenhando como petiscos exibidos no balcão. O primeiro de tudo: como seria a relação com seus produtos? O ponto de partida é que não poderiam ficar sem beber, é claro. Mas beber o que precisavam vender? Só consumir na concorrência – então, qual o sentido de ter um bar? Uma cota de consumo – mas qual? E foram copos e mais copos nesta discussão...

O primeiro impasse lhes colocou diante do dilema capital: o lucro corrompe o prazer. Tornarem-se burocratas da boêmia parecia-lhes um crime. E colocar as raposas para cuidar do galinheiro, como se dizia antigamente, não parecia um investimento fadado ao sucesso. A sensação de ressaca tomou a todos quando acordaram do sonho perfeito.

Amigo, mais uma aqui, por favor. “No shopping Center, alegria artificial. No bar, tristezas sinceras”, dizia o poeta na mesa ao lado.

Fonte: Na Ponta do Lápis
Imagem:Tudo para homens 

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