Pular para o conteúdo principal

Na Poesia, Carlos Drummond de Andrade.


     O Rapazinho disse à garota:
     - Você precisa ter mais cultura, ouviu? Cultura. fica aí com essas milongas de Caetano, Gil e não sei que mais, e ignora os verdadeiros mestres da poesia. Já ouviu falar em Camões?
     - Já. Um chato
     - Rilke?
     - Como é o nome dêle?
     - Emily Dickinson? 
     - Sei lá.
     - Fernando Pessoa?
     - Esse é irmão da Tânia, ora.
     -Viu como você é burrinha? Irmão da Tânia coisa nenhuma. Quem é a Tânia para merecer um irmão desse gabarito? Fernando Pessoa, meu anjo, é simplesmente o maior...
     -Então são dois. Porque Nandinho eu conheço bem, não é de poesia.
     - Podem ser mil com esse nome, nenhum chega aos pés do Fernando Pessoa de que eu estou falando.Qual, você tem jeito não.
     - Então, por que você diz que gosta de mim? Procure outra que saiba de cor nomes de todos esses caras. 
     - Não tem nada uma coisa com a outra. Gosto de você por certos motivos. Gosto de você... até nem sei por que. Mas fico por conta vendo você tão ignorantezinha em poesia, que pra mim é o máximo.
     - Pois me dá umas aulas de poesia.
     - Depois do carnaval eu dou Agora você está com a cabeça mal atarraxada. Vamos fazer o seguinte. Te empresto o meu Fernando Pessoa para você dar uma lida salteado e depois conversamos. Muito cuidado com o volume, viu, sua maluca? É de estimação.Se você perder, nem sei o que acontece.
A garota me procurou:
     - Posso lhe pedir um favor?
     - Dois.
     - Estou com um problema sério.
     - Esqueceu a pílula?
     - Isso é pergunta que se faça? E se eu usasse e esquecesse, era ao senhor que eu recorreria?
     - Desculpe, conte seu problema.
     - Meu namorado me emprestou um livro, e o Gibi comeu.
     - Quem é Gibi?
     - Meu fox-terrier de dois meses. Um cãozinho divino!
     - O Gibi comeu o livro. E daí?
     - Daí o livro era de estimação, um tal de Fernando Pessoa. Meu namorado me mata.
     - Mas o Gibi papou o livro inteiro?
     -Só um pedaço da capa e as primeiras folhas. Quando eu vi e zanguei com ele (zanguei de leve, não bati) , já tinha papado.
     - E então?
     - Meu namorado tem muita história com o senhor. Diz que o senhor também é bacana, embora não tanto quanto Fernando Pessoa.
     - Obrigado.
     - Comprei outro livro para dar a ele. Caro, hem? esse Fernando Pessoa. Gastei quase toda a mesada.
     - Por que não devolve o livro meio comido pelo Gibi? Namorado acha graça em tudo.
     -Vou devolver, mas ele não ia achar graça. O Gibi comeu a dedicatória.
     -De Fernando Pessoa para seu namorado? Sem essa.
     -Era do professor do meu namorado. Foi um prêmio que ele ganhou na faculdade.
     -Ahh
     - O professor mudou para Brasília, como é que eu vou me arranjar? Então eu queria que o senhor autografasse o livro novo, para eu entregar junto com o velho, e ele ver que fiz o possível para remediar a começão do Gibi.
     -Minha filha, por que eu vou entrar nessa dança? Não sou o professor, não sou o Pessoa, não sou o Gibi.
     - Mas o senhor não está compreendendo que o livro tem de ter um autógrafo? A quem eu vou pedir? Ao Jorge Ben, ao Chacrinha? Aí é que ele me enforcava mesmo. Me faz esse favorzinho, faz. Bote aí uma coisa lindinha, diz que o Gibi não teve culpa, que ele gostou demais de Fernando Pessoa , pensou que era doce e regalou-se!
     Botei. E no exemplar comido, meu autógrafo seguiu com o de Gibi.

Andrade, Carlos Drummond de,  O Poder ultra jovem e mais 79 textos em prosa e verso. 3ª ed.Rio de Janeiro, José Olympio, 1974, págs. 13 a 15.

Nota: o blog manteve a grafia original

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.