Pular para o conteúdo principal

Oração, Fernando Pessoa - tradução de Jorge Pontual



Nossa Senhora das lágrimas vãs,
Dai ao meu coração o vosso ninho.
Adoeço em infindáveis manhãs
E me embebedo com o amargo vinho
De só conhecer  angústias mal sãs,
De não saber senão viver sozinho.
Reconheço que imploro a vós em vão,
Mas meu coração só conhece a dor.
Um vosso olhar seria a salvação,
Mesmo que seja um olhar de horror.
Concedei-me que eu volte a ser irmão
Do vosso menino, Nosso Senhor.
Meu sentido de mim é todo pranto,
De mim mesmo só tenho muita pena.
Oh colo dos meus medos acalanto
Agarro-me a vós, criança pequena.
Quisera vos ver viva por encanto
A minha mão na vossa mão serena.
Há muito tempo perdi o sabor
Da fé, e tenho ânsia de oração
Meu coração é um jardim sem flor,
Nos meus brancos cabelos, vossa mão
De mãe deixai repousar com amor
E deixai-me morrer por compaixão.

Prayer
Our lady of Useless Tears,
Thine is my heart's best shrine.
I am sick with the gorging years,
I am drunk with the bitter wine
Of having but cares and fears,
Of knowing but how to pine.
It is useless to pray to thee,
But my heart is full of pain.
Thy glance would be charity,
Even if the look were disdain.
Give me that I may be
A child like thine again.
My sense of me is all tears.
I pity my heart too much.
O a cradle for my fears
And the hem of thy garment to clutch!
O wert thou alive and near us,
And thy hand a hand that could touch!
l do not know how to pray.
My heart is a torn pall.
See how my hair grows gray.
O teach my lips to call
On thy name night and day
As if that name were all.
My fathers' faith doth rise
To my lips this sick hour.
I pray to thee with mine eyes
Rosaries of anguish. O dower
My soul.with a least sweet lies
Of thy suffering son's power!
I have forgotten the taste
Of faith, and ache for prayer. My heart is a garden laid waste.
O thy hand on my hair
Like a mother's hand let rest
And let me die with it there!


The Mad Fiddler». in Poesia Inglesa. Fernando Pessoa. (Organização e tradução de Luísa Freire. Prefácio de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Livros Horizonte, 1995.- 352.

Imagem: www.revistapazes.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.