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O João-de-Barro do Meu Quintal, Olegário Mariano





O João de barro do meu quintal
Construiu dia a dia o seu ninho. Cantava
E cantando sonhava, trabalhava
Mal o sol descosia a bruma matinal.

Argamassou o barro e, solitário,
O ninho concluiu, graças a Deus,
Com a paciência feliz de um operário
Que, pedra a pedra, faz a casa para os seus.

Feita a casa limpinha, arejada e modesta
No poste mais agudo da Fazenda,
Foi para êle esse dia um domingo de festa
E uma canção mandou ao céu como oferenda:

 

“Bendita a água  que o barro amoleceu!
Bendito seja o sol porque o barro enrijou!
Bendita a vida pela força que me deu!
Ao meu amigo sol devo tudo que sou!”

Mais uma noite, (a casa estava pronta)
O temporal rugiu no cabeço do monte
E o trovão rebentou no céu de ponta a ponta,
As serras, abalando o horizonte.

A tromba –d’água , o frio e a rejada revolta
Varrem canto a canto o céu revôlto e a treva.
O João-de-barro andou como uma folha solta,
Fôlha que o vento traz, fôlha que o vento leva.

Quando veio a manhã clara de primavera
Havia troncos nus e paineira em rama.
O que era ninho é agora um resto de tapera,
O que era um bloco é agora um punhado de lama.

O João-de-barro do meu quintal,
Operário oprimido, envelhecido,
Pelas rudes angústias que sofreu,
Não mais enche de sons a curva do caminho.
Se canta, a sua voz mais parece um gemido
Dizendo ao meu ouvido:
“Seja maldita a água que o barro amoleceu!
Maldito seja o sol que não secou meu ninho!
Aqui tens, meu amigo, o que a vida me deu!”

In: Mariano, Olegário,Toda Uma Vida de Poesia, Vol., Ed.José Olímpio 1957

Nota: o blog manteve a grafia original e o poema acima foi escrito em 1949 o que explica a incorreção em diversas palavras.

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