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Quadros, Marin Sorescu - tradução: Luciano Maia


Todos os museus têm medo de mim
porque cada vez que fico um dia inteiro
em frente de um quadro, no dia seguinte se anuncia
o seu desaparecimento.

Todas as noites sou flagrado roubando
em outra parte do mundo, mas eu não me importo
com as balas que silvam perto dos meus ouvidos
e com os cães-lobos que conhecem agora
o cheiro dos meus rastros melhor que os namorados
o perfume da amada.

Falo alto com as telas que põem em perigo a minha vida
penduro-as nas nuvens e nas árvores
e recuo para ter perspectiva.
Com os mestres italianos pode-se ter facilmente uma conversa.

Que algazarra de cores! Também por esse motivo
com eles sou flagrado rapidamente
visto e ouvido à distância
como se levasse papagaios nos braços.

O mais difícil é roubar Rembrandt:
estendes a mão e encontras a escuridão –
Ficas horrorizado, os seus homens não têm corpos
apenas têm olhos fechados em caves escuras.

As telas de Van Gogh são doidas
giram e dão cambalhotas
e tenho de segurá-las bem com ambas as mãos
porque são absorvidas por uma força da lua.

Não sei porque Bruegel me faz chorar.
Não era mais velho que eu
mas chamaram-no o velho
porque tudo sabia quando morreu.

E eu procuro aprender com ele
mas não posso reter as minhas lágrimas
que correm sobre as minhas molduras de ouro
quando fujo com as estações debaixo do braço.

Como estava dizendo, todas as noites roubo um quadro
com uma destreza invejável.
Mas o caminho é muito longo.

Sou apanhado por fim
e chego em casa altas horas da noite
cansado e rasgado pelos cães
segurando na mão uma reprodução barata.



Fonte: Memória das águas

Imagem: Lucia Adverse

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